segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Marxismo 2009 - luta de classes, marxismo, militância

Nos próximos dias serão realizados, no (IPS) Instituto de Pensamento Socialista Karl Marx -dirigido pelo Partido dos Trabalhadores pelo Socialismo (PTS), membro da Fração Trotsquista-Quarta Internacional, da qual a Ler-qi também faz parte - em Buenos Aires, uma série de debates que compõem o Marxismo 2009 - lucha de classes, marxismo y militancia. Trata-se da uma reedição do Marxismo 2008, dado o grande sucesso da inicitiva do IPS. Serão tratados temas que vão desde os 20 anos da queda do muro de Berlim, o golpe em Honduras, a crise capitalista mundial, os desafios do movimento operário de hoje, e um debate final contrapondo marxismo e movimento operário nos anos 70 e hoje.
Todas os debates serão transmitidos pela TV PTS, às 21 horas, através dos sites http://www.marxismo2009.com.ar/ ou http://www.tvpts.tv/. Estes sites também contém a programação completa. Acompanhe!



sábado, 21 de novembro de 2009

Um olhar sobre 1989: que lições devemos tirar?




Por Edison Salles


[Texto lido por ocasião do debate: "20 anos da derrubada do Muro de Berlim", com Edison Salles e os profs. A. C. Mazzeo e M. Del Roio, ocorrido no campus Marília da UNESP, em 10-11-2009]


Boa noite a todos,
Há diversas formas de abordar o 1989 fazendo ressaltar a enorme importância extra-acadêmica desse tema de reflexão.
Fazendo justiça ao lugar onde estamos (o campus Marília da UNESP), quero pedir licença para anunciar desde já que buscarei dialogar sobretudo com o “autonomismo” entendido como “espírito de época” de nossos dias.
Ainda que só possa retornar a este ponto na parte conclusiva desta exposição, gostaria de deixar de antemão anunciado esse objetivo particular.

Algumas perguntas para iniciar

Em primeiro lugar, quando falamos da queda do Muro de Berlim, é preciso compreender o que foi que caiu e como e por que caiu. Que tipo de regime havia na Alemanha Oriental (RDA)?
Acho que vale a pena retornar a dois pontos anteriores, para responder a esta pergunta, isto é, teremos que nos deter um pouco na análise do caráter social do stalinismo e no papel novo que ele passou a exercer após o fim da 2ª Guerra.
Isso é essencial para evitar aquela tendência do pensamento a “naturalizar” os resultados prontos com que se depara. Ou seja, é preciso perguntar: como chegamos à divisão de um país imperialista de primeira ordem como a Alemanha? De início, é fácil ver que o processo dessa divisão teve muito pouco a ver com as divisões norte-sul que ocorreram no Vietnã e na Coréia – países que foram palco de grandes revoluções anticoloniais e cuja divisão foi subproduto de guerras civis em que o imperialismo interveio maciçamente, tendo a divisão do país como resultado a partir dos acordos que as duas superpotências do pós-guerra firmaram entre si.
Já no caso da Alemanha, o elemento de acordo entre as potências (EUA e URSS) foi muito mais determinante, até porque se impôs por fora e antes que qualquer processo revolucionário pudesse se desenvolver após a derrota de Hitler – e é importante termos em mente que as condições para que a Alemanha atravessasse uma situação revolucionária após 1945 eram totais.
Em todo caso, isso nos leva então ao problema da divisão do mundo em esferas de influência após a 2ª Guerra, o que nos obriga a entender, pelo menos em linhas gerais, tanto o caráter fundamental da época imperialista, como o caráter social do stalinismo. Por falta de tempo para desenvolver o primeiro, me deterei a seguir no segundo tema.

O caráter social do stalinismo

Como sabemos, o stalinismo, ou a burocracia stalinista que governava a URSS (e mais tarde dominou os PCs em todo o mundo) consolidou-se no poder a partir da derrota da revolução mundial, cujo ascenso mais vigoroso se deu na esteira do triunfo bolchevique na Rússia em 1917. Não há tempo aqui para nos determos nesse processo, mas para que tenhamos uma idéia basta afirmar que em toda a Europa central a guerra levou à queda dos velhos impérios e à ação revolucionária das massas: na Hungria chegaram a tomar o poder em 1919, na Bulgária e na Romênia chegou-se muito perto disso... Porém é na Alemanha que o destino da revolução mundial se jogava, e somente nesse país abriram-se processos revolucionários profundos em 1918-1919 e de novo em 1923 (além da famosa ação ultra-esquerdista de março de 1921, que não deixa de ser um sintoma da situação de conjunto). É fácil ver que um novo triunfo nesses países daria uma força invencível para que a revolução seguisse avançando rumo ao Oeste e também no mundo semicolonial.
O isolamento internacional da URSS obrigou-os a enfrentar sozinhos os problemas de uma economia não apenas atrasada em seu conjunto, mas arruinada por vários anos de guerras. Como diria Trotsky, o que faz a burocracia não são as relações socialistas de propriedade, mas antes a escassez econômica. Marx havia dito que sem um regime social de abundância, a luta pelo básico iria retornar após a revolução e, com ela, “toda a velha merda”. Trotsky dirá que a falta do pão leva à formação das filas de racionamento, e quando estas se tornam grandes demais, surge a figura do policial que vigiará a fila e a do burocrata que decidirá para quem vai haver e para que não vai haver pão.


Do "burocratismo" ao Estado totalitário


Resumindo muito todo o processo entre a morte de Lênin (1924) e a situação na entrada da guerra (1939), podemos dizer que já Lênin morreu lutando (em acordo com Trotsky) contra o que ambos denominavam “burocratismo” no Estado soviético. Após sua morte, esses elementos de “burocratismo” avançam cada vez mais para conformar um corpo estável de funcionários, com interesses especiais, separados das massas. Abrindo as portas do Partido para uma enorme camada de arrivistas de todo tipo, e recusando-se a reintroduzir a liberdade de partidos soviéticos na URSS , Stalin tirou proveito da situação e conformou de maneira consciente um sistema de privilégios para uma camada social de dezenas de milhares e centenas de milhares de burocratas apartados dos milhões de operários e camponeses. Não ia tardar muito para que a manutenção desses interesses materiais separados e especiais começasse a se tornar diretamente antagônica a toda iniciativa ou autonomia mínimas por parte dos trabalhadores.
Isso significou que as campanhas caluniosas delirantes de perseguição à Oposição de Esquerda, que cresceram durante a segunda metade dos anos 1920, se transformassem em perseguição generalizada às massas e aos fuzilamentos em massa nos anos 1930. (Aqui vale um parêntese, pois não deixa de ser uma amarga ironia ler hoje em Lukács que ele apoiava até certo ponto as perseguições stalinistas quando eram contra a Oposição, porém rejeitava a utilização dos mesmos métodos contra a classe operária, quando esta foi apenas o desenvolvimento lógico do mesmo processo – afinal os ataques à Oposição já eram ataques à classe – mais uma mostra de que nem toda a inteligência e muito menos toda a erudição de Lukács o ajudaram a jamais compreender a verdadeira natureza do stalinismo – e que dirá combatê-lo corretamente).
Voltando ao tema, antes de chegarmos ao papel do stalinismo no pós 2ª guerra e a criação da RDA, temos que deixar ao menos apontado o impacto internacional do stalinismo. Resumindo, podemos dizer que já desde 1924 a burocracia de Moscou passou a intervir na Comintern e através dela em todos os PCs ao redor do mundo, transformando esses partidos em dóceis correias de transmissão de sua política, e lançando furiosas campanhas de calúnias, perseguições e expurgos de todos os revolucionários que se negavam a se submeter ao novo mando (vale dizer que não foram poucos os comunistas que, sem disporem de informações sobre o que se passava no Partido russo e na URSS, descobriram e aderiram assim ao trotskismo).
São 3 os principais exemplos do que significou essa domesticação dos PCs e posterior transformação destes em verdadeiras ferramentas para impedir a revolução: a revolução chinesa de 1925-1927; a capitulação diante de Hitler em 1933; a revolução espanhola (sobre este último vale a pena ver o excelente filme de Ken Loach, “Terra e Liberdade”).

A 2ª Guerra Mundial

A síntese de tudo isso é que a URSS chega à 2ª guerra novamente isolada do ponto de vista da revolução socialista (desta vez devido ao papel consciente do stalinismo para “organizar as derrotas” da classe operária), e internamente vive uma situação descrita por Trotsky como uma encruzilhada entre uma nova revolução operária que restabelecesse os sovietes, a planificação democrática, a liberdade de partidos soviéticos, e do outro lado, a restauração do capitalismo.
Na guerra, após a bizarra posição inicial de pacto com Hitler que significou entre outras coisas a divisão da Polônia, Stalin termina por se alinhar aos EUA e às “potências democráticas”. Até hoje existe toda uma historiografia (por exemplo, Hobsbawn) que parte disso para negar toda continuidade entre a 1ª e a 2ª guerras, apresentando a última como uma guerra de democracia X fascismo (“guerra de regimes”) e não uma nova guerra imperialista para completar a nova partilha do mundo que a 1ª guerra não conseguiu concluir. Mas o interessante para nós é que após a guerra a política de Stalin será tentar perpetuar os acordos com os EUA (já em 1943 Stalin dissolveu publicamente a Comintern com este fim) e perseguir uma política de “coexistência pacífica” com o imperialismo.
É nesse marco então que se faz a divisão da Alemanha, por sobre qualquer possibilidade de autodeterminação das massas alemãs. A derrota na guerra livrava os alemães do odioso regime nazi, mas os fez deparar-se com o fato consumado de que outras potências, sentadas ao redor de uma mesa, decidiram o futuro de sua nação.
O stalinismo, que no mesmo momento atuava de maneira decisiva para desarmar a resistência das massas, impedir qualquer possibilidade revolucionária nos países centrais, chamando os trabalhadores a darem as mãos aos burgueses na reconstrução do capitalismo europeu, chegava então a um novo extremo, aceitando o plano imperialista de dividir a Alemanha em “protetorados” que garantissem que não voltariam a ocorrer os sucessos de 1918 (a grande revolução que a 1ª guerra pariu).
Nesse sentido, os primeiros anos após 1945 serão marcados por duas espécies de processos bem distintos. De um lado, na Iugoslávia e depois na China, temos situações em que o chefe stalinista local (o marechal Tito, o comandante Mao Zedong) se vê obrigado pelas circunstâncias a tomar o poder, mesmo contrariando Stalin e contrariando suas próprias intenções iniciais. De outro lado, temos os países do Leste europeu, incluída a RDA, onde é o processo de tutela política por funcionários indicados por Moscou, ligado ao aumento da hostilidade imperialista com a Guerra Fria (após 1947), que leva a expropriações “em frio”, ou seja, sem uma participação efetiva das massas. São “Estados operários” no sentido de que ali se aboliu a propriedade privada e se estabeleceu a nacionalização e a planificação central da economia. Mas são também Estados monstruosamente deformados, questão que é ainda agravada pelo fato de que essas “expropriações sem revolução” (propriamente dita) são controladas por uma economia de comando onde se introduz um importante elemento de opressão nacional.

As revoluções operárias contra o stalinismo

Falando muito brevemente, esta situação leva a que sejam justamente esses países do Leste europeu que constituam o palco para as maiores revoluções operárias antistalinistas, ou em certa medida, as maiores revoluções operárias do pós-guerra em geral. Não seria possível analisar minuciosamente cada um dos processos (nem muito menos) mas basta termos em mente as seguintes datas: Berlim 1953, Hungria e Polônia 1956; Polônia e Tchecoslováquia 1968; Polônia 1980. Todos esses processos, e sobretudo os da Hungria e o de Berlim, foram processos em que a centralidade e a iniciativa operária comprovaram a acuidade do programa da IV Internacional (Programa de Transição) sobre o caráter e as reivindicações daquilo que Trotsky chamou de “revolução política” (e cujo alcance ultrapassa e muito as reformas “políticas”, diga-se para evitar falsas discussões) para os países dominados pelo stalinismo. Em particular a enorme atividade dos conselhos operários em 1956 e os chamados dos trabalhadores húngaros a que os russos permitissem que eles construíssem o socialismo por si mesmos (rejeitando explicitamente qualquer possibilidade de restauração do capitalismo) é a expressão máxima de que de fato era necessária uma nova revolução operária para colocar tais países na rota do socialismo. (Também na RDA os operários falavam em um “governo metalúrgico”, e não em retorno ao capitalismo.)
Com isso chegamos à parte final desta exposição.
O destino de todos aqueles processos de revolução política proletária contra as burocracias stalinistas foi um só: foram invariavelmente esmagados em sangue (coisa que Moscou tentava legitimar diante da opinião pública de esquerda no mundo caluniando os processos como intentos restauracionistas patrocinados pelo imperialismo).
A história demonstrou, pelo contrário, que a vitória daquelas revoluções, ajudadas por novos triunfos revolucionários nos países de economia avançada, era a única forma de defender o socialismo e evitar a restauração. Mais ainda, a história mostrou que os verdadeiros restauracionistas se encontravam apenas entre os burocratas, e isso se viu no Leste, na URSS, na China (e hoje se vê em Cuba). Os mesmos chefes que não hesitaram em afogar em sangue as reivindicações democráticas e socialistas das massas, foram os que cederam aos imperialistas e abriram as portas para que os produtos capitalistas minassem por dentro os regimes apodrecidos e as economias estagnadas. Foram os mesmos que depois se apressaram para apropriar-se dos despojos da economia planificada, dando origem ao capitalismo mafioso que se instaurou após fins dos anos 1980.

Das revoluções derrotadas ao ano 1989

No entanto, o título da atividade usa a palavra “derrubada” e não simplesmente “queda” do Muro. E isso é verdade: em 1989 as massas saíram às ruas e sua ação ajudou a pôr fim aos regimes do mal chamado “socialismo real”. Sobre isso, queria apenas chamar a atenção para dois pontos: a) por mais que se estude os processos, não se encontram sinais de que houvesse uma clara intencionalidade naquelas ações no sentido de restaurar a propriedade privada capitalista. Antes disso, o que vemos é que o ódio delas aos regimes opressivos em que viviam estava carente de uma alternativa clara do que fazer; e assim, aqueles regimes totalmente carcomidos por dentro, ruíram de uma vez e disso o imperialismo pôde se aproveitar para, patrocinando arrivistas como Yeltsin, restaurar oficialmente o capitalismo (o que jamais nos poderia fazer esquecer que a restauração é um processo muito mais complexo e profundo, que se iniciou antes e se estendeu além desses momentos); b) o agudo contraste entre aqueles processos abertos em 1989, processos populares, sem direção clara e sem auto-organização efetiva das massas, e os processos citados anteriormente, como a revolução húngara de 1956; ao contrário desta, o 1989 nos diversos países (e mesmo na China, onde foi sufocado pela burocracia e nem por isso a restauração foi menos impiedosa) não possuiu qualquer centralidade operária, e muito menos tendências soviéticas desenvolvidas.
A conclusão de tudo isso é que entramos nos anos 1990 com uma profunda crise de subjetividade operária, com a revolução desaparecendo do horizonte das massas, com uma enorme crise da esquerda e do próprio marxismo. Daí o gancho com o que dissemos no início, pois ao contrário de ceder aos encantos do “autonomismo”, que transforma todo o processo histórico em fonte de visões simplistas e preconceituosas contra o marxismo, contra o partido, contra a ditadura do proletariado, contra a luta de classes; ao contrário disso, o balanço correto dos fatos nos obriga a escovar a história a contrapelo para aprender as suas lições, que nos ensinam justamente a importância da luta de classes e de que os trabalhadores tomem o poder, que nos reforçam a necessidade de construir o partido revolucionário, nacional e internacional.
Obrigado.

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Algumas impressões sobre o Seminário István Mészáros e os desafios do tempo histórico

Simone Ishibashi

Em meio a toda propaganda de que a crise capitalista internacional já estaria se fechando, o ciclo de debates intitulado István Mészsáros e os desafios do tempo histórico, promovido pela editora Boitempo em homenagem ao filósofo húngaro, discípulo de Georgy Luckács, tem sido uma brisa fresca para todos os que não se convencem das teorias do descolamento. Ou como mínimo daqueles que desconfiam que uma crise como esta, que inúmeros analistas burgueses compararam com a Grande Depressão de 1929, possa ser resolvida de uma forma assim, digamos, tão pacífica.
Logicamente, esta que vos fala, se insere entre os que enxergam na parcial recuperação financeira da ultra conjuntura mais uma bolha que de fato uma retomada da economia. Afinal, mesmo com o presente de trilhões e trilhões dados aos bancos e especuladores dos EUA e União Européia pelos governos, o máximo que se conseguiu foi evitar a quebradeira generalizada dos bancos. Mas não o crescimento do desemprego, a depressão da chamada “economia real” e as tentativas de descarregar a crise sobre as costas dos trabalhadores mundo afora. Portanto, os debates tem sido interessantes, justamente por reunir aí uma parcela daqueles que apesar de manter muitas diferenças entre si, compartilham de um aspecto fundamental em relação a presente crise: que é profunda e que expressa a própria decadência do capitalismo.
Grata surpresa, entretanto, foi o surgimento em algumas exposições dos temas relacionados à classe trabalhadora e sua ação, à política e à saída a ser dada frente à crise, indo além dos temas conceituais e teóricos. Num seminário que poderia ser mais um ato do divórcio entre teoria e prática tão marcante em nosso país, foi de fato muito interessante ver elementos de maior aproximação, ainda que profundamente incipientes, entre este dois aspectos fundamentais do marxismo (ou pelo menos inquietação, mesmo que teórica, em torno da práxis). Pelo menos no âmbito das preocupações de alguns dos intelectuais participantes. Pena é que os debates se dão hoje, pouco tempo após o encerramento da greve da USP. Se tivessem coincidido teria, sem dúvida alguma, cumprido um papel muito superior, tanto para a elaboração teórica, como para a ação dos que protagonizaram este inicial, mas importante, ato de questionamento da universidade e de defesa das demandas dos trabalhadores, contra a presença da polícia. Mas para que isso se desse, a aproximação entre teoria e práxis já teria que estar muito mais avançada. Atuemos neste sentido.
Agora apenas alguns breves comentários sobre as discussões que pude presenciar.

Estranhamento no século XXI

A sessão da noite de 18/08 dedicada à discussão sobre Trabalho e Alienação contou com a presença de Jesus Ranieri, Ricardo Antunes, Giovani Alves e Ruy Braga. As intervenções retomaram o debate acerca da teoria da alienação em Marx e o estranhamento do trabalho. Foram falas de conjunto interessantes, as várias formas de alienação presentes no capitalismo, como a alienação em relação ao produto do próprio trabalho, a alienação em relação ao próprio gênero humano, e ao próprio trabalho. Um dos aspectos interessantes do debate foi levantado por Ruy Braga quando resgatou o conceito de emancipação como fundamental nos Manuscritos Econômicos Filosóficos de Marx, ao contrário das leituras feitas pela Teoria Crítica que apreendem apenas o aspecto do proletariado como classe estranhada, negando a possibilidade desta transcender tal condição.
Outro aspecto interessante foi o abordado por Ricardo Antunes acerca das novas formas de alienação no século XXI, em que os trabalhadores foram transformados em “colaboradores” na pregação ideológica de algumas das grandes corporações, que busca justamente encobrir o imenso avanço da terceirização e precarização dos trabalhadores. Nomeou muito acertadamente, a meu modesto modo de ver, também a divisão entre luta econômica e luta política como um outro elemento que contribui para tornar mais dificultoso o processo de avanço da consciência da classe trabalhadora.
Frente a estas observações segue aberto o questionamento: o próprio regime sindical brasileiro, - em que muitas vezes até mesmo os sindicatos dirigidos pela esquerda, ao “respeitar” as divisões entre terceirizados e efetivos, ao ter dirigentes que não se submetem ao controle da base, que há décadas tem o privilégio de não trabalhar – não seria um dos elementos que contribuem para a perpetuação da alienação?
Este questionamento, a despeito do caráter interessante do debate, não obteve uma resposta satisfatória, sendo contestado de maneira geral. Sobretudo, por estar na mesa Ricardo Antunes, que segue até que diga o contrário ligado ao PSOL, e Ruy Braga ao PSTU.

Crise estrutural do capital

Na sessão da noite de 19/08 o debate novamente abarcou a crise capitalista atual. Destacou-se a fala de François Chesnai, que polemizando com Mészáros apresentou uma visão do desenvolvimento da crise estrutural no século XX cuja lógica remetia a uma concepção mais próxima a de Lênin quando definiu a irrupção de uma época imperialista, iniciada nos princípios do século XX. Resgatou a crise do capitalista das décadas de 20 e 30, e sua resolução a partir da II Guerra Mundial e a imensa destruição de forças produtivas que significou, e depois a crise da década de 60/70 como a base para o período de valorização de capital a partir dos ataques neoliberais sobre os trabalhadores, início da incorporação da China e da ex-URSS ao capitalismo, e hipertrofia do mecanismo de financeirização da economia. Para Mészáros, grosso modo, a crise estrutural se iniciaria no final dos anos 60 e início na década de 70, tendo como materializações fundamentais a guerra do Vietnã, o Maio Francês de 68, e or processos contra as burocracias do Leste. Neste sentido, pareceu-nos que a visão de Chesnai dá conta de maneira mais profunda das contradições do sistema capitalista mundial, ao ligar as transformações econômicas e os fenômenos políticos no desenvolvimento do século XX.
Outra intervenção interessante foi do economista argentino Jorge Beinstein que ressaltou como esta crise não é mais uma crise cíclica, mas tem um caráter profundo, agravado também pelo processo de decadência histórica do imperialismo norte-americano. Terminou defendendo a auto-emancipação dos pobres, e contraditoriamente reivindicando governos como os de Chávez e Evo Morales.
Questão que não se cala: se Marx já dizia que a emancipação dos trabalhadores será obra dos trabalhadores mesmos, não é chegado o momento de atuarmos conscientemente para que exemplos como o da fábrica argentina Zanon, que depois de 8 anos em que esteve ocupada e funcionando sob controle operário obteve a vitória inédita de ser expropriada na semana passada, sejam os que norteiem a ação da classe trabalhadora e dos povos latino-americanos, ao invés de seguir reivindicando governos pós-neoliberais como Chávez e Evo Morales?

Os debates estão acontecendo na semana de 18/08 a 21/08 na USP, e posteriormente se estenderá para a UNICAMP, CUFSA, UNESP, UERJ, UFRJ, UFRGS, CEFET-MG e UNB. Até o momento já foram realizados quatro debates, em que participaram nomes como François Chesnai, Jorge Bernstein, Ricardo Antunes, Jesus Ranieri, entre outros.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

A história escarnecida

Por Edison Salles

Desculpem os leitores a demora para esta postagem, mas algo no caderno Mais! deste domingo (FSP 28/06/09) merece um comentário, pelo menos para não passar em branco. É que a contracapa do caderno traz uma entrevista com o conhecido historiador francês Paul Veyne.

Como isto é um blog, e não o espaço para longas discussões acadêmicas, vou direto ao ponto: a entrevista fornece um belo exemplo do atual estatuto das “ciências do espírito” – o historiador escarnece da história (aliás, da história real, com minúscula, tanto como da História ciência, com maiúscula), e o faz com gosto, ao que parece.

Grande erudito e especialista em Grécia e Roma antigas, nosso sábio reflete muito do irracionalismo ainda em voga, e formula idéias como a de que “a história não tem mais utilidade que a astrologia. É um assunto de pura curiosidade ou, pelo menos, é preciso tratá-la como tal. A história não ensina nada e não permite tirar lições eternas”. Ora, não é pouco, considerando que é dito com autoridade de alguém que conhece mais da história do que 99,99% dos leitores (para ficar num número modesto)...

Como já avisei que pretendo tirar proveito das prerrogativas do “estilo blog” de escrita (ao qual ainda estou me acostumando, e a custo), vou pular a parte de demonstrar o absurdo do rebaixamento da história (que já foi considerada a ciência única do futuro) ao patamar das curiosidades astrológicas, e aproveitar para destacar outro ponto.

É que, se comparamos as passagens do raciocínio desenvolvido por Veyne com as fórmulas ideológicas que depois são apresentadas como conclusão, é impossível não reparar numa pequena distância, um “gap” lógico, que corresponde precisamente ao espaço necessário para extrair uma generalização grosseira e todo-poderosa, de premissas bem mais cuidadosas (ainda que não menos errôneas).

Fico no exemplo da frase já citada (há outros no texto). Reparem que Veyne afirma que “a história não ensina nada”, para agregar imediatamente que ela “não permite tirar lições eternas”. Ora, se ela não ensina nada, qual a necessidade da palavrinha “eternas” para qualificar essas lições que dela não podem ser tiradas? A resposta é clara: com esse acréscimo inocente deixa-se implícito o grotesco da posição contrária, isto é, quem quer que pretenda extrair qualquer lição da história (que nosso erudito já decretou, não ensina nada) só pode estar em busca de "leis eternas”, da verdade absoluta, ou outros absurdos próprios de dogmáticos e afins.

Termino com algo que vai no mesmo sentido; para isso precisarei citar mais um trecho, vamos lá: “A mesma coisa aconteceu com as ciências humanas por volta de 1860. Esse momento corresponde à contestação radical do cristianismo. A partir desse corte, descobrimos que tudo é histórico, e é a partir daí que as ciências humanas se desenvolvem, libertando-se de todos os preconceitos de nossos antepassados. Essa mudança é marcada pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Ele foi o primeiro a mostrar que as noções ditas eternas tinham, na verdade, uma história”.

O que essa citação demonstra? É claro que, em primeiro lugar, salta aos olhos que seja Nietzsche nos anos 1860 o responsável por “historicizar” as noções antes tidas como eternas, e não Marx a partir da década de 1840, ou mesmo Hegel desde o início do mesmo século. Mas, para além dessa óbvia distorção – em que o mesmo Nietzsche que tanto contribuiu para destruir qualquer conceito objetivo de história, na linha do “não há fatos, apenas interpretações”, seja apresentada como seu iniciador – para além disso, devemos reparar em algo mais sutil, porém pleno de significação. É que o mesmo Veyne que equiparou a história à astrologia, precisa apoiar-se em certas verdades materialistas (afins ao pensamento marxista) para conferir alguma consistência a seus enunciados. Ou seja, para afirmar a tradição pós-moderna, apresenta-a como portadora de conteúdos que ela mesma se limitou a “pinçar” do arcabouço de uma outra corrente oposta, a saber novamente, o marxismo. Assim, Veyne responde à pergunta seguinte, sobre Foucault, dizendo: “Foucault demonstrou que as convicções, por mais fortes que possam ser, devem ser analisadas dentro de seus contextos históricos”. Ora, pensando na tríade que o próprio Foucault gostava de apresentar como fundadora do pensamento contemporâneo, Nietzsche, Freud e Marx, quem senão este último poderia realmente reivindicar a paternidade daquela noção histórica?


quarta-feira, 24 de junho de 2009

terça-feira, 23 de junho de 2009

Poder e autoridade: novos velhos argumentos para a manutenção da antidemocrática ordem uspiana


foto: Faculdade de Direito em 1950





Daniel A. Alfonso


Na edição do Mais! deste domingo, dando continuidade ao debate aberto na intelectualidade da USP em torno ao futuro da instituição, Renato Janine Ribeiro, professor titular de ética e filosofia política, escreve um artigo no qual diferencia o conceito de autoridade e poder, uma vez que para Ribeiro, essa distinção é fundamental para entender a crise instalada na Universidade de São Paulo.
Ribeiro deixa claro que não é aos funcionários, estudantes e professores, no sentido mais abrangente de comunidade acadêmica, que deve recair a responsabilidade de direção da universidade. Para ele, a democracia é o poder do povo, e este se encontra fora dos muros da universidade, no “povo”, que através de impostos garante o funcionamento da instituição. Para quem acreditava que Ribeiro, como intelectual que se posta no campo da esquerda, seguiria dizendo que era necessário acabar com a distância entre os que se encontram dentro e os que estão fora da USP, grande decepção. Ribeiro afirma que o povo se expressa...através das posições do governador, este democraticamente eleito (claro, a presença da PM no campus, a repressão ao movimento grevista, tudo isso foi feito com o aval do “povo”, que Ribeiro aparenta se esquecer que é formado, em sua enorme maioria, pela classe trabalhadora).
Partindo de que o principal papel da universidade é oferecer qualidade ( sem um questionamento, sequer elementar, em relação à quem a “qualidade acadêmica” presta seus serviços), a autoridade, fruto da própria qualidade, é o elemento que permite a existência e a viabilidade da autonomia universitária. Esta por sua vez, garante que a luta partidária não entre em campo, permanecendo onde lhe cabe: na disputa eleitoral.
Trata-se de uma versão mais sofisticada de uma posição bastante conservadora. A visão ahistórica de Ribeiro em relação à democracia, deixando de lado a essencial questão – que a maioria dos melhores analistas abertamente conservadores leva em consideração – que a sociedade ( ou o “povo”) é constituído de classes sociais que detêm interesses distintos frente à realidade, acaba por legitimar a atuação completamente anti-democrática do governador José Serra, que sabe que a USP, e em certo sentido a educação paulista em geral, é uma pedra no sapato que calça para as eleições de 2010. Uma política que busca minar as bases da livre organização sindical, para aprofundar e acelerar a transformação da USP em uma usina de excelência acadêmica...para o grande capital.
Sua resposta em termos de mudança do regime universitário é, conseqüentemente, bastante tímida. Apesar de defender a ampliação do colégio eleitoral, sua proposta não coloca em xeque a questão do poder concentrado nas mãos dos professores titulares, nem poderia, pois lembremos que para ele a autoridade, guardiã da autonomia universitária, advém da qualidade, personificada na docência. Quem são os funcionários e os estudantes para decidirem alguma coisa?
É assim que defende uma mudança no sistema, porém mudá-lo “quatro meses das eleições seria ilegítimo. Mas ele [ o sistema ] precisa ser ampliado”. Entendemos, portanto, que Ribeiro considera “legítima”, a militarização da USP e os ataques perpetuados por Serra e Suely ( será que considerará uma manifestação “legítima” e democrática a empreitada de alunos da direita mais canalha, serventes da reitoria, que nos últimos dias vêm atacando e provocando o Sintusp? ). Para Ribeiro, qualquer mudança deve servir para dar mais autoridade ao reitor, aprofundar a qualidade acadêmica...e só. Será que Ribeiro se esqueceu que no Conselho Universitário, órgão máximo da USP, suposto guardião da autoridade acadêmica, para ficarmos em um exemplo emblemático, a FIESP tem mais poder (sim professor Ribeiro, mais poder) que funcionários, professores e estudantes? Como separar a autoridade acadêmica do poder universitário, se é este quem decide acerca dos rumos de pesquisa da universidade, e está cada vez mais colocando a universidade a serviço de grandes empresas nacionais e transnacionais?
Não podemos permitir que o debate, catalisado pela militarização da USP e que já ultrapassa as barreiras desta instituição, tergiverse sobre os rumos da universidade dentro de limites tão estreitos, regidos pelo espírito da mais absoluta servidão à democracia burguesa, que expulsa os trabalhadores da universidade, para em seguida afirmar que são eles, o “povo”, que desde fora e através da figura do governador (!) detêm o poder na universidade. Esse tipo de posição só se presta à confusão e ao embelezamento de uma universidade, que é, desde sua gênese, elitista e racista. É este o momento de questionarmos profundamente o funcionamento da universidade e o papel que desempenha na sociedade, buscando sempre, junto com os trabalhadores e professores críticos, uma saída realmente favorável ao povo.

domingo, 21 de junho de 2009

Militarização da USP incita novos debates


É preciso discutir as tarefas da nova geração universitária

Artigo escrito em colaboração com o Boletim Desatai o Futuro

A greve da USP não apenas fez reviver o movimento estudantil, mas sacudiu a intelectualidade num clima de forte polarização política. É tarefa primordial da juventude universitária seguir criticamente os debates que ganham o espaço público. Uma nova onda de politização percorre os meios estudantis. É hora de refletir, e radicalizar posições, antes de métodos.

Pesos pesados da vida intelectual brasileira se movem contra a presença policial na USP

Antonio Candido, Marilena Chauí e Maria Victoria Benevides falaram com distintas vozes e pelo menos uma mensagem comum: repúdio à presença policial na USP e ao que isso significa historicamente; apoio ao movimento democrático de estudantes, funcionários e docentes contra a reitora atual e a estrutura de poder que a sustenta.
Marilena Chauí, filósofa de Espinosa e do otimismo petista, insuspeita portanto de qualquer revolucionarismo, pôs o dedo na feria e esclareceu: não basta pedir eleições diretas para substituir Suely Vilela; é preciso desconstruir a própria estrutura de poder da Universidade. Colocou a luta contra a repressão e o autoritarismo como intermináveis, e chamou os estudantes presentes a verem-se como continuadores de uma história de resistência que passa por 1964, e prosseguirá através das gerações.
Antonio Candido, expoente maior da crítica literária brasileira, expôs seu protesto veemente à PM na USP, que caracterizou como um atentado aos direitos democráticos mais sagrados. Localizou do ponto de vista histórico a formação da USP e da “Faculdade de Filosofia”, a qual veio trazer a integração do pensamento que faltava ao ensino até então puramente elitista das Faculdades tradicionais (de Direito, Engenharia e Medicina). Em sua visão histórica, que cobre mais de meio século, a USP se define, antes de tudo, pelo seu papel na própria criação e sustentação da vida cultural do país. É a partir de seu próprio significado progressista na história do país que deve ser defendida atualmente.

O outro lado: um novo fortalecimento do discurso conservador

No plano teórico, não é possível passar despercebido o deslocamento semântico que a palavra “democracia” vem sofrendo no Brasil nos últimos anos. Se vemos o regime atual em perspectiva, a mudança de significado do termo é gritante: do forte conteúdo social que carregava nos anos oitenta, quando vinha impregnada das mais altas aspirações populares, da esperança de democratização de todas as esferas da sociedade brasileira, acalentada em meio às mesmas mobilizações operárias e populares que tragicamente eram conduzidas para uma mudança de regime favorável à manutenção dos interesses capitalistas nacionais e estrangeiros; para o esquálido conceito dos dias atuais, de cunho nitidamente burguês, em que significa acima de tudo o peso de instituições completamente alheias às massas, e o uso acerbo da violência coercitiva “legítima”.
A diferença entre ambos, em todo caso, adquire uma clareza inequívoca à luz dos acontecimentos bárbaros da primeira metade de junho. Afinal, o que vimos por parte da direita descarada, disposta a apoiar a presença da polícia mesmo depois de suas consequências nefastas mostrarem-se com toda a clareza?— O discurso de que a democracia pressupõe normas e o recurso legítimo à violência para defender estas normas. A polícia, as prisões, a repressão, não somente são parte integrante deste conceito de democracia, mas compõem um núcleo cada vez mais sobressalente deste mesmo conceito.
Transformando toda aspiração democrática da humanidade em ilusão, e cunhando uma deformação conceitual em que o regime democrático se caracterizaria apenas pelo fato de que o governo constituído aceita a realização de competição ordenada pelo poder (capaz promover uma “circulação de elites” cujo limite é dado estritamente pela necessidade de legitimar junto ao povo a sua própria opressão. Enfim, uma conceituação em que o que fica de fora é simplesmente – tudo.
Os anos recentes viram mais de um exemplo da aplicação prática do conceito. Na infame invasão da PM à PUC-SP em 2007, trinta anos depois do coronel Erasmo Dias, foi o argumento empunhado por um Cláudio Gonçalves Couto, então diretor do Depto de Política da PUC. A reitora Suely Vilela o emprega agora para exigir “lei e ordem” na USP, enquanto gente como a historiadora Maria Hermínia Tavares de Almeida – que até já foi marxista e produziu investigações relevantes, antes de se fazer “tucana” – faz coro.
Porém uma atuação tão explícita, como a da PM no dia 09/06, é disfuncional, desmascara muito rápido o conteúdo por trás do rótulo. Assim, fez com que importantes setores conservadores mais contidos se escondessem atrás de uma posição que reivindicava mais “tranqüilidade” policial, condenando os “possíveis exageros”. A já citada Maria Herminia é quiçá o caso mais emblemático dessa posição: retira-se o foco da presença da polícia, localizando o problema em seus “excessos”, ao passo que se transmite a responsabilidade da crise aos grevistas.
Na juventude a situação é tão grave ou mais: o ultra-individualismo consumista alimentado por décadas de neoliberalismo, somados à apatia política e o desinteresse pelas questões sociais, tornaram-se o caldo de cultura para os piores valores direitistas.
Recentemente um conhecido articulista (Clóvis Rossi), o qual, é bom lembrar, não vai além da centro-esquerda no espectro político, espantava-se com a falta de solidariedade entre os estudantes, ou pior ainda, com o aparecimento de um setor expressivo capaz de apoiar a repressão a seus próprios colegas, e o que dizer então dos trabalhadores da universidade.
Particularmente naquelas faculdades uspianas como as de Administração, Economia e Engenharia, em que a principal ambição na vida dos estudantes é alcançar a posição de gestores do grande capital, cresce de forma purulenta uma direita abertamente retrógrada.
Mais importante, as autoridades acadêmicas, diretamente ligadas a grandes empresas e ao aparato do governo estadual, fomentam os preconceitos antipopulares e antissindicais e os manipulam como podem. No movimento atual, foram feitas mais de uma tentativa de promover “plebiscitos” ou “abaixo-assinados” para dar uma aparência de “base de massa” a essa política alentada de maneira vil pelos lacaios de Suely Vilela e José Serra. Um pequeno “laboratório” do que seria um governo deste último, manipulando os preconceitos da classe média para obter sustentação para um projeto “linha dura”, capaz de atravessar a crise sem vacilar quando o assunto for reprimir as lutas operárias e populares?

Por uma nova intelectualidade radical, por um novo movimento estudantil

Vendo a situação atual em profundidade, isto é, também no que ela já carrega de forma embrionária dos conflitos maiores que estão por vir, algumas questões começam a ganhar maior claridade.
É que, por mais importante – e até mesmo, na conjuntura atual, insubstituível – que possa ser para o movimento o apoio de personalidades do calibre das que protagonizaram o ato de repúdio à PM na USP, verdadeiros arautos democráticos em tempos de definhamento e sistemática mutilação da democracia, bastiões de uma tradição progressista que busca apoiar-se nas maiores realizações democráticas da história nacional. Por mais importante que possa ser tudo isso, e de fato o é, não é nem será suficiente para nos salvará de grandes calamidades.
Pois a mesma onda direitista que assistimos hoje, se por um lado é sim uma conseqüência direta do longo período neoliberal, nem por isso deixa de ser, vista de outro ponto de vista, conseqüência do tipo de democracia construída no país com o término da ditadura militar; uma democracia que foi pactuada e que perdoou os ditadores e torturadores; e que o fato de que estes estejam livres (e muitos ocupando postos em diversos setores do Estado, incluída a PM), e que os lutadores sejam criminalizados como acontece hoje na USP e em tantos movimentos sociais; é a outra face do mesmo pacto de transição, em que o PT surgiu com seu projeto “democrático e popular”, incapaz porém de superar o horizonte miserável do capitalismo brasileiro.
Pois para fazê-lo é preciso construir um projeto realmente alternativo, que signifique uma democratização radical da sociedade brasileira em todas as suas esferas, a universidade incluída.
E o que isso significa? Num plano geral, significa não deter o conceito da democracia nos aviltantes limites do regime da propriedade capitalista; mas estendê-la ao efetivo exercício do poder pelas massas a partir da sua auto-organização.
E no que tange à universidade, significa lutar por uma universidade em que a comunidade universitária determine os rumos do ensino, da pesquisa e da vida acadêmica em geral, por sobre a vontade de monopólios e governos capitalistas, e a partir dos mais elevados padrões científicos e do mais apurado sentido das verdadeiras necessidades sociais.
Uma universidade em que o ato de colocar o conhecimento a serviço da maioria trabalhadora do país, longe de ser uma restrição ao conhecimento, seja a condição consciente do alargamento de suas possibilidades.
Uma universidade, portanto, em que o acesso da maioria pobre e trabalhadora não seja uma “dádiva” ou uma mera ilusão, mas sim uma conquista democrática imorredoura; uma conquista arrebatada pela luta aos monopólios privados que dominam o ensino superior no Brasil, e às camarilhas privatizantes que infestam o que resta do ensino público, a começar da USP.

Lançamento do livro A crise estrutural do capital de István Mezsáros

Debate de estratégias nas entrelinhas

Simone Ishibashi

Na noite de 16 de junho aconteceu na sede da Apeoesp em São Paulo o lançamento de coletânea de textos de István Mezsáros intitulado “A crise estrutural do capital”, editado pela Boitempo. O evento contou com a presença dos professores Ricardo Antunes, Plínio de Arruda Sampaio Jr, ambos da Unicamp e ligados ao PSOL, e Ruy Braga da USP, ligado ao PSTU. Cerca de 200 pessoas assistiram o debate, apesar do clima gelado da noite. Ressaltaremos neste breve texto, alguns elementos que nos parecem mais importantes.
A fala inicial esteve a cargo de Ricardo Antunes, que tratou de sintetizar alguns pontos do pensamento do filósofo húngaro e de sua visão sobre a crise. Dentre estes, ressaltou que para Mezsáros não seria válida a concepção de que a dinâmica do capitalismo seria composta por crises cíclicas, mas sim por uma crise sistêmica, orgânica, ou ainda endêmica e permanente, aprofundada desde a década de 70. Esta crise seria agravada pelas tendências destrutivas do capitalismo atual, que fez o autor elaborar o conceito de “forças destrutivas”, que seria parte inerente da reprodução do “sistema metabólico do capital”.
Neste sentido, as forças destrutivas, bem como a “tendência à queda da taxa de uso das mercadorias”, outro conceito que se refere ao cada vez menor valor de uso das mercadorias produzidas sob o capitalismo atual seriam elementos complementares às tendências gerais contidas na lei do valor tal como formulada por Marx, que agravariam os aspectos anárquicos da produção capitalista atual. Como uma derivada disso, a irracionalidade no uso dos recursos naturais seria o terceiro grande perigo para a continuidade da espécie humana sob o capitalismo, tendo em vista o crescente desequilíbrio ecológico gerado pelo capitalismo, de acordo com o resgate traçado por Ricardo Antunes.
Este elemento é talvez um dos mais interessantes, pois a degradação ecológica, problema cada vez mais importante, é tema analisado ainda quase que exclusivamente por setores reformistas, e muitas vezes anti-operários, que buscam traçar uma ideologia oposta e autônoma ao problema de classe. Não à toa, o próprio Mezsáros a partir de suas preocupações – corretas – sobre o futuro dos recursos naturais, termina em obras anteriores embelezando a União Européia como um capitalismo mais “ecologicamente correto”, contra os EUA. Como se a chave fosse o Protocolo de Kyoto, e não a anarquia capitalista.
Em seguida, Ruy Braga começou sua exposição desculpando-se por não ter preparado uma fala mais elaborada em função das atividades da greve da USP (até que enfim alguém a mencionou!). Aplausos foram puxados em homenagem à luta de trabalhadores, estudantes e professores das estaduais paulistas (muito embora, na modesta opinião desta que vos fala tenham sido demasiadamente tímidos, sobretudo se levarmos em consideração que ali se fazia presente a ala esquerda, tanto intelectual quanto política, da universidade). Após o chamado ao ato de quinta-feira em defesa da greve, Ruy Braga resgatou duas vias de explicar a crise: a teoria subconsumista, de que as crises capitalistas seriam produto do descompasso entre produção e consumo e que, portanto sua solução teria que passar por medidas de tipo neokeynesianas para ajustar a demanda, e a do “profit squeeze”, que grosso modo parte dos fundamentos contidos na lei do valor para ressaltar que o capitalismo funciona aprofundando seus desequilíbrios inerentes, que quando se sobressaem às contra-tendências explodiriam em crises, como a atual.
Por fim, Plínio de Arruda Sampaio Júnior colocou que a grande contribuição de Mezsáros era que este elaborou uma teoria voltada para auxiliar a prática transformadora, sobretudo frente à crise econômica. Extrapolando a reprodução das teses de Mezsáros – que escapa à sua especialidade – Plínio complementou a fala defendendo que para fazer frente à crise, haveria que “controlar as reservas cambiais brasileiras”.

Revolução? Estado de transição? Só nos Estados Unidos

Em linhas gerais, não poderíamos deixar de discutir, ainda que despretensiosamente pelo espaço deste blog, uma das concepções que na modesta opinião desta autora é um dos mais problemáticos dentre os trabalhados por Mezsáros. Trata-se da visão que este traça sobre os rumos tomados pela URSS após sua burocratização e à teoria do socialismo num só país que dela deriva. De acordo com o resgate traçado por Ricardo Antunes, para Mezsáros a URSS não teria se constituído como estado operário, ou de “transição” por não ter destruído o “tripé estado –capital -trabalho assalariado”. Portanto, para Mezsáros a revolução russa teria dado lugar a um estado “pós-capitalista”, assexuado do ponto de vista de a qual classe responderia.
A autora deste artigo questionou qual seria a saída para o estado de transição e quais as lições da URSS para Mezsáros, já que para Trotsky e outros as raízes da burocratização residiriam no atraso econômico da URSS e, sobretudo, em seu isolamento com a derrota da revolução alemã de 1919, seguida da posterior política stalinista de “socialismo num só país”, que na prática significou o estrangulamento com a ajuda da burocracia soviética aos processos revolucionários que se abriram. Portanto, para Trotsky havia uma saída clara: a continuidade revolucionária urgente que deveria levar à vitória da revolução nos países da Europa, e o combate revolucionário contra a burocracia stalinista no plano interno, que deveria levar a uma revolução política.
Mezsáros que ao contrário de seu mestre Luckács critica a teoria do socialismo num só país oferece outra solução ao problema. A grande questão do isolamento da revolução, e a possibilidade de um estado de transição só seriam contemplados se esta se desse no “coração do capital”, ou seja, nos Estados Unidos ou demais países centrais. A predominância econômica, política e social dos imperialismos sobre os países de desenvolvimento mais atrasado resolveria, mais ou menos automaticamente, o problema da internacionalização da revolução. Dessa forma, Mezsáros apresenta uma visão que retrocede em problemas há muito resolvidos pelos marxistas revolucionários, como o de se seria válida ou não a divisão entre países maduros e não maduros para a revolução. Substitui o combate pela reconstrução de uma Internacional dos trabalhadores como via de internacionalizar as forças subjetivas da classe trabalhadora e dos povos do mundo, pela proclamação de que só com a revolução norte-americana o socialismo teria alguma possibilidade de se furtar de repetir a tragédia soviética.
O mais interessante é que apesar desta concepção, Mezsáros é um entusiasta defensor de Chávez e de movimentos como o MST. Questionado por Plínio sobre qual o papel que os países da assim chamada “periferia do capital” poderiam cumprir no combate ao capital, Antunes deu a entender que “este seria muito importante”, mas não ofereceu uma resposta satisfatória ao dilema apontado por Trotsky de que os países atrasados são mais passíveis de ser palco de revoluções, e mais difíceis de alcançar o comunismo, e vice-versa em relação aos países centrais. Conclusão: os trabalhadores e os povos dos países semicoloniais devem lutar, mas não tomar o poder sob pena de se transformarem em URSS burocratizadas do século XXI. Esta tarefa caberia apenas ao países centrais.
Embora seja indiscutível que a revolução nos países de capitalismo avançado é imprescindível para o desenvolvimento do estado operário rumo ao comunismo, e ao estado de “abundância” (lembremos que a URSS no ápice de sua produtividade não ultrapassou os EUA), o capital hoje, muito mais internacionalizado favorece os efeitos que uma revolução triunfante em um país semicolonial pode ter nos países centrais. Além disso, o desenvolvimento desigual e combinado, exacerbado contraditoriamente pelos anos de globalização neoliberal, também favorece estes efeitos. Conclusão: ao contrário de aguardar pacientemente a revolução nos EUA, ainda não há programa superior ao combate para que as lutas dos trabalhadores e das massas sejam vitoriosas onde se derem, aprofundando o internacionalismo operário e sua direção internacional. E isso não virá de nenhum Chávez, mas da ação independente da classe trabalhadora.

Controle das reservas de câmbio. Uma saída plausível?

Outro elemento que não poderíamos deixar de tocar, ainda que brevemente, foi a proposta de Plínio de Arruda Sampaio Júnior de que haveria que lutar pelo controle das reservas cambiais brasileiras. Resgatando Rosa Luxemburgo quando afirmava que não haveria que abrir mão da luta por consignas e demandas reformistas, mas ligá-la ao combate pela tomada do poder, Plínio afirmou haver uma disputa sobre o controle destas reservas entre a burguesia, que a quer para salvaguardar seus interesses e recuperar suas perdas com a crise, ou se seria investido em favor do povo.
Decerto que não se pode abandonar o combate pelas demandas, ainda que imediatas e parciais, da classe trabalhadora e do povo. Mas é imprescindível ligá-la à conspiração revolucionária para a tomada do poder, do qual a confiança da classe trabalhadora em suas próprias forças e políticas orientadas no sentido da independência de classe são condições obrigatórias. Neste sentido, cabe perguntar a Plínio como isso poderia ser feito das trincheiras do PSOL, que vêem na polícia federal um aliado. E mais, como lutar pelo controle das reservas, se diferenciando também dos setores da burguesia brasileira que defendem uma política de maior controle frente à crise. Dois elementos ausentes da fala de Plínio.

Partido: por que não abrir a discussão?

Por fim, um debate que não se abriu seriamente, mas foi uma demonstração patente dos dilemas da esquerda brasileira se deram em torno da questão de qual partido seria necessário para enfrentar os desafios postos pela crise. A afirmação de Ruy Braga que “eu defenderei o PSTU, os companheiros o PSOL”, foi interrompida por Ricardo Antunes e Plínio de Arruda Jr que em uníssono disseram “não, não defendemos o PSOL (?!), temos sérias dúvidas do que acontecerá com este partido”. Não seria ocioso perguntar por que seguem aí, já que o PSOL não passa de um fenômeno eleitoral que vai cada vez mais à direita (Protógenes!) e sequer conta com a afluência de setores importantes da classe trabalhadora...
Por outro lado, foi uma unanimidade entre os presentes que todos os existentes estariam muito aquém das necessidades da classe trabalhadora. Também aqui cabe perguntar: então por que não abrir um debate público, junto aos setores de trabalhadores que hoje se organizam na Conlutas e a juventude que desperta para a vida política, nos dias atuais à frente da imensa luta das estaduais paulistas, e as forças da esquerda revolucionária a discutir seriamente que partido político a vanguarda da classe trabalhadora precisa para fazer com que sejam os capitalistas que paguem pela crise? Mistério...

domingo, 26 de abril de 2009

O PENSAMENTO DE CAIO PRADO JÚNIOR





Intervenção de Daniel A. Alfonso
no debate de lançamento da Revista ISKRA,
na universidade de São Paulo


No dia 31 de março foi realizado o debate O PENSAMENTO DE CAIO PRADO JÚNIOR, como atividade de lançamento da revista Iskra na Universidade de São Paulo. O debate contou com a presença dos professores da USP Lincoln Secco, Bernardo Ricupero e Rodrigo Ricupero, além de Daniel A. Alfonso, editor da Revista Iskra. Foi uma importante oportunidade para refletir sobre o pensamento de Caio Prado Jr, integrante do PCB e um dos mais importantes intelectuais brasileiros a se inspirarem no marxismo. Apesar das diferentes interpretações acerca de sua obra, o debate, assistido por mais de 85 pessoas, teve como fundamento uma reflexão de alto nível. Impossibilitados de dar conta da rica discussão nas páginas deste jornal, expomos abaixo um resumo da primeira intervenção de Daniel A. Alfonso.[1]

Muito sinteticamente, podemos resumir o eixo ordenador do pensamento de Caio Prado na sua busca por meios que viabilizassem a superação do nosso “sentido da colonização”. Esse sentido, iniciado com a extração do pau-brasil mas que segundo o historiador se agrava inclusive com a entrada massiva de capital imperialista no século XX, se daria pelo fato do Brasil sempre servir como fonte de matérias-primas “para o abastecimento de mercados estranhos”, renegando portanto os reais interesses nacionais.

A visão em relação á revolução é distinta entre Caio Prado e o PCB. Seguindo as conclusões a que chega estudando o passado nacional, Caio Prado afirma que a dinâmica de ciclos econômicos para exportação nunca permitiu que o capitalismo realmente fincasse pé em solo nacional. Não há feudalismo a ser superado, mas por outro lado a economia brasileira tampouco era verdadeiramente capitalista, no sentido em que Caio Prado entendia o capitalismo. Sendo assim, nas palavras do historiador, “o capitalismo brasileiro é pouco mais que um forma exterior e sobreposta”. A superação de nosso sentido, está para Caio Prado, profundamente ligado ao enraizamento do capitalismo no Brasil, ou seja, à promoção de uma dinâmica relação entre produção e consumo que viesse a dar conta de atender às “reais necessidades da população”. A constituição, e antes disso, a promoção por parte do Estado de ferramentas que viabilizassem a constituição de um sólido mercado interno é para o historiador tarefa urgente - para o qual a política brasileira, perdida entre teorias alheias e a ineficácia, baixo nível cultural e um parco conhecimento da realidade brasileira - fecha os olhos. Caio Prado dá especial atenção à dois elementos para enraizar o capitalismo e fortalecer o mercado interno, sendo o primeiro a questão agrária. Caio Prado, ao afirmar que o Brasil é capitalista, unilateraliza essa posição e chega á conclusão de que não existem camponeses no Brasil, e mais, escreve com todas as letras no famoso livro “A Revolução Brasileira”, que a luta pela terra quase não existe no Brasil, e isso quando de Tromba e Formoso! Portanto, a reforma agrária, para o historiador, seria a combinação da extensão da legislação trabalhista para o campo e da partilha da extrema concentração de terras. Este é um ponto nevrálgico de seu pensamento, pois Caio Prado, na falta de uma perspectiva revolucionária que visse na luta pela reforma agrária um meio fundamental da classe operária aliar-se ao povo do campo, no marco da luta por hegemonizar a nação e instaurar um Estado de transição dirigido por trabalhadores e camponeses, enxergava a divisão das terras através de um processo legal, dirigido pelo Estado burguês, que se iniciasse nos pontos fracos da estrutura fundiária, as parcerias, enfim, um processo pacífico de divisão das terras improdutivas. Era sua preocupação evitar maiores dificuldades às atividades produtivas e em suas palavras, deveria-se evitar, “no processo da divisão, a perturbação das atividades produtivas e [a] desorganização dos estabelecimentos”. Essa visão talvez balize toda proposta de reforma agrária da esquerda reformista até hoje. O segundo aspecto ao qual Caio Prado dá importância para dinamizar o mercado interno é a industrialização, que chega a dizer que constituem a “presença de formas econômicas que apontam na direção de um desenvolvimento diferente do sistema colonial”.

Em relação ao golpe de 64, queremos comentar a visão de Caio Prado pelo fato de muitos militantes de esquerda, e inclusive aqueles que estão começando a se politizar, serem influenciados pelo balanço que o historiador faz do golpe, considerado de esquerda por muitos, quando na verdade se trata de uma visão bastante conservadora. Sobre a estrutura política brasileira em geral, Caio Prado afirmava que parte central do problema era que não existia correspondência entre as instituições políticas e as necessidades da população. Critica o PCB por não dar conta de responder profundamente essa questão, e previamente ao golpe, de se ancorar na defesa de Goulart, um demagogo na visão do historiador. O golpe teria sido resultado da combinação entre agitação estéril por parte da esquerda – que insistia em teorias importadas –, da classe operária e dos trabalhadores do campo. Caio Prado parte de um elemento de crítica correto: o de que a esquerda estava demasiadamente atrelada ao governo, porém o faz desde um ponto de vista completamente reformista. Quiçá justamente por isso, fecha os olhos em relação ao peso que seu partido tinha na classe operária na década de 60, chegando a afirmar que o proletariado agiu como “simples massa de manobras táticas, manejada, mais que orientada e dirigida propriamente, por minorias efetivamente ativas que não passam muitas vezes de ínfimos grupos.” A história nos mostra que não foi bem assim. O PCB tinha forte inserção na classe operária, sendo que por diversas vezes a classe operária se chocou contra o PCB no curso de suas lutas, e sua política de conciliação de classes, sintetizada na defesa de Goulart, foi o principal responsável pela derrota de uma batalha não-dada e instauração da ditadura.
No que diz respeito à noção de socialismo e partido revolucionário, Caio Prado retira seus ensinamentos diretamente do stalinismo. Por exemplo, em um livro publicado após viagem à União Soviética, afirma categoricamente que “nenhuma organização social ( pelo menos as já de certa forma evoluídas e por isso mesmo complexas) pode dispensar uma direção. Nestas condições deverá surgir na própria sociedade que virá, para substituir a sociedade burguesa, uma diferenciação entre o grupo investido desta direção e o resto da população.” A conclusão que Caio Prado retira daí não poderia ser mais clara quando diz que “o socialismo portanto nunca passará de um programa: uma sociedade sem classes é impossível”. Isso em relação aos países desenvolvidos, e à União Soviética em particular, pois longe de sequer criticar os brutais métodos da burocracia soviética, afirma que “é incontestável que o regime soviético representa a mais perfeita comunhão entre governados e governantes”.

Já em relação aos países subdesenvolvidos, e em particular ao Brasil, apesar das análises de Caio Prado e do PCB em relação às tarefas da revolução, ambos compartilhavam um acordo estratégico profundo: o de que o Brasil era um país não-maduro para a revolução socialista. È certo que ao PCB era funcional ter em suas fileiras um intelectual do porte de Caio Prado, e também é correto afirmar que Caio Prado enxergava no PCB um exemplo de dedicação e militância, mas esses elementos não são superiores à esse acordo estratégico. Caio Prado afirma categoricamente: “A socialização dos meios de produção (...) é certamente prematura nos países subdensenvolvidos com seu baixo nível industrial e a larga fragmentação das atividades econômicas.” Para o PCB tratava-se então de organizar os trabalhadores e os camponeses para auxiliar a burguesia a fazer sua revolução e instaurar o capitalismo; para Caio Prado, partindo de uma análise muito mais sofisticada, tratava-se de aprofundar-se no conhecimento da realidade nacional, aperfeiçoar as instituições políticas, voltar a produção para os interesses nacionais, desenvolver um robusto mercado interno e enraizar o capitalismo, sendo a democracia o regime capaz de dar vazão à essas transformações. Em outras palavras, o aperfeiçoamento do capitalismo, pelas mãos da burguesia que deve sua existência à apropriação do trabalho excedente da classe operária, é próprio caminho ao socialismo. E essa é uma visão completamente não-marxista. Esta discussão de países maduros e não maduros para o socialismo já era velha e havia sido respondida pela história. No começo do século passado, quando a Revolução Russa se aproximava, a maioria dos dirigentes social-democratas, com distintos fundamentos, negavam a ditadura do proletariado e a conquista de um Estado operário. Trotsky respondia, e a história lhe deu razão, que as condições internacionais estavam mais do que maduras para a revolução socialista e que os países atrasados poderiam chegar antes á tomada do poder, porém mais tarde ao socialismo. Rússia, depois China o leste europeu, Cuba, etc, confirmaram este prognóstico.

Apesar da obra de Caio Prado ter cumprido, não sem enormes contradições, o papel de uma historiografia que toma o materialismo como base da compreensão da realidade, sendo trechos de suas obras realmente brilhantes, acreditamos que Caio Prado não pode ser considerado um autor marxista, nem muito menos o maior marxista brasileiro; isso no sentido revolucionário do termo. É responsabilidade daqueles que se colocam no campo do marxismo desmascarar em todas as oportunidades a hipocrisia da burguesia frente aos problemas do país, lutar para que a classe operária passe a confiar somente em suas próprias forças, e assim consiga dar importantes passos para conquistar a hegemonia dos trabalhadores do campo e da pequena-burguesia urbana e rural. Os marxistas não podem virar as costas à responsabilidade de aportar para colocar de pé um partido revolucionário, que esteja fundido com a classe operária e saiba aproveitar as oportunidades históricas que se avizinham. Essa perspectiva, em tempos da maior crise econômica desde 1929, não poderia ser mais atual.


1 As citações foram retiradas de Esboço dos Fundamentos da Teroria Econômica, URRS um mundo Novo, A Questão Agrária e A Revolução Brasileira, todas obras de Caio Prado Júnior

assista ao vídeo do debate:

parte I - http://www.youtube.com/watch?v=Z9HrhpFwcKg

parte II - http://www.youtube.com/watch?v=4QNzAkKLTlo

parte III - http://www.youtube.com/watch?v=fb47OVnzusA&feature=related

domingo, 5 de abril de 2009

Lançamento da Revista Iskra na Unesp de Marília

DEBATE: LUKÁCS E O STALINISMO*


No dia 24 de março, na UNESP – Marília, ocorreu o debate “Lukács e o stalinismo”, como parte dos eventos de lançamento da revista Iskra nº 1. O debate reuniu o camarada Edison Salles (LER-QI) e Antônio Carlos Mazzeo, docente do câmpus e da direção do PCB. Discutindo o legado de Lukács e a relevância de sua contribuição ao marxismo, o debate teve momentos acalorados que refletiam a oposição de princípios entre os debatedores sobre como avaliar a obra de Lukács. Na impossibilidade de expressar aqui o debate em seu conjunto, publicamos abaixo um resumo da intervenção de Edison.

O tema da atividade, Lukács e o stalinismo, é também o título do artigo publicado na revista ISKRA. Essa revista é elaborada pela juventude universitária da LER-QI, que buscamos nos constituir como uma nova geração de intelectuais militantes revolucionários. E então cabe a pergunta: porque iniciar o projeto encarnado na revista ISKRA polemizando com autores como Lukács e Caio Prado Jr? Até mesmo alguns companheiros nos questionaram, por que não começar polemizando com, por exemplo, os autores pós-modernos que tanto peso possuem nas universidades?

Falando muito sinteticamente, poderia dizer que há dois motivos centrais para escolher a polêmica com Lukács (sobre Caio Prado Jr. não poderemos nos estender aqui).

O primeiro motivo tem a ver com uma característica que salta aos olhos quando observamos o panorama intelectual brasileiro. É que, mesmo no momento de maior defensiva histórica do marxismo, quando a burguesia imperialista desencadeou uma enorme ofensiva ideológica afirmando que o socialismo havia morrido e com ele também o marxismo – e é preciso reconhecer que até hoje sentimos o peso dessa ofensiva, basta ver a quantidade de jovens combativos e sinceramente decididos a lutar por uma sociedade que supere o capitalismo, que caem nas armadilhas do discurso autonomista e sua negação da política, da luta de classes, da necessidade de construir um partido revolucionário... – mesmo neste momento amplamente desfavorável para o marxismo, ele não foi completamente eliminado do cenário intelectual brasileiro. Ao contrário, em diversas universidades ele encontrou nichos onde pudesse permanecer, com a realização dos mais diversos eventos (palestras, debates, etc, que vêm aumentando ano a ano) e com a produção de dezenas de trabalhos a cada ano (projetos de iniciação científica, monografias, teses de mestrado e doutorado, até em alguns casos livre docência como recentemente defendeu o próprio prof. Mazzeo). Por outro lado, o preço a pagar por essa permanência foi muito alto, pois: a) esse marxismo se distanciou enormemente da classe operária, que no melhor dos casos foi tratada como mero “objeto de estudo”; b) os temas diretamente revolucionários foram praticamente excluídos de sua pauta de reflexão (sobretudo os problemas de estratégia, tática, programa, etc).

Num momento em que a força objetiva da própria crise começa a colocar novamente a questão operária no centro da cena política (seja com as notícias diárias sobre as demissões em massa em todo o mundo, seja através de as primeiras respostas operárias à crise em ações como a recente greve geral que mobilizou milhões de trabalhadores da França), dá para perceber facilmente a insuficiência desse “marxismo” que encontramos nas universidades (e veremos como a crítica a Lukács está ligada a isso).

O segundo motivo está menos ligado a características particulares brasileiras, e nesse sentido tem raízes mais profundas. É que a propaganda burguesa que proclamou furiosamente o fim do socialismo não estava “pendurada no ar”. Ao contrário, ela se sustentava no fato de que o capitalismo foi restaurado nos países onde a burguesia chegou a ser expropriada – me refiro à Rússia, ao Leste europeu, à China - sem que para isso fosse preciso detonar uma única bomba ou dar um único tiro; de que a restauração capitalista tenha se dado a partir das próprias contradições de sociedades que estavam estagnadas devido ao domínio totalitário de burocracias que sufocavam toda atividade operária, e com isso também impediam o próprio desenvolvimento econômico.

O que quero dizer com isso é que hoje todos nós que nos engajamos na luta pelo fim do capitalismo, temos um enorme desafio que é recuperar o marxismo e devolver às massas, em primeiro lugar aos trabalhadores mais avançados, a idéia de que é possível destruir esse sistema decadente e substituí-lo por uma verdadeira democracia de massas apoiada sobre a auto-organização dos trabalhadores. Mas para fazer isso, para devolver uma perspectiva revolucionária aos trabalhadores, e também à juventude, temos que ajustar contas com os enormes desvios de rota que se fizeram em nome do marxismo, e demonstrar que aquelas burocracias eram inimigas de morte do verdadeiro marxismo.

E aqui entra o Lukács. Não porque ele defendesse toda a concepção dogmática e mecanicista imposta pela “doutrina oficial” da burocracia da URSS. Mas justamente porque ele usava sua enorme erudição – tanto em termos das obras clássicas de Marx e Engels, como em relação à cultura ocidental em geral, desde os gregos e passando pelo renascimento e a filosofia clássica alemã –, usava essa erudição para dar uma nova legitimação ao poder das burocracias governantes na URSS e no Leste europeu.

E isso não apenas porque ele silenciou sobre inúmeras atrocidades perpetradas por essas burocracias governantes (como mostramos na revista). Mas porque ele emprestou, até o fim da vida e no curso de sua sinuosa trajetória, emprestou o seu prestígio como pensador, e seu refinamento, para a defesa de vários dos pilares teórico-políticos sobre os quais a burocracia se sustentou.

Para ficar em alguns exemplos, que talvez sejam os mais significativos: Ele defendeu a) a teoria do “socialismo num só país”; b) a teoria da Frente Popular (colaboração de classes com a burguesia em nome da luta contra o fascismo); c) o Pacto de Varsóvia (isto é, a subordinação completa dos países do Leste à burocracia do Moscou, como vemos nas críticas a Imre Nagy no livro “Pensamento Vivido”); d) a “coexistência pacífica” com o imperialismo (chamada por ele de “nova forma da luta de classes”, por exemplo no livro “Conversando em Lukács”). Também não podemos deixar de mencionar que ele, em diversos escritos, corrobora a visão da burocracia de que a Oposição de Esquerda (especialmente os trotskistas) era o “principal inimigo”, ora considerada como “agente do fascismo”, ora como “agente do imperialismo norte-americano” (por exemplo, em “A Destruição da Razão”, entre outras obras).

Por outro lado, é preciso “equilibrar” nossa crítica dizendo que algumas idéias levantadas por Lukács, e defendidas por alguns lukacsianos brasileiros, possibilitaram que tenhamos nos encontrado no mesmo lado da trincheira em vários combates ideológicos que tivemos que travar nos últimos anos. Em especial, duas idéias: a) a volta a Marx, que apesar de que criticamos quando tomada de maneira unilateral (como se fosse possível dar um salto mortal por sobre mais de 100 anos de história do movimento operário internacional), fornece elementos para que nos reapropriemos do que há de vivo, de dialético, de revolucionário no pensamento de Marx, em contraposição às visões dogmáticas e mecânicas que imperaram sob o stalinismo; b) a centralidade do trabalho, que permitiu combater corretamente as diversas vertentes que definiam que as novas tecnologias teriam levado ao “fim do trabalho”, ou então aquelas que diziam que a centralidade da classe trabalhadora havia se perdido no labirinto dos “novos movimentos sociais”.

Porém num momento em que a realidade exige respostas audazes dos marxistas, achamos que vale a pena convidar os lukacsianos a dar mais um passo a frente na superação dos impasses deixados pelo “mestre”. E aos jovens marxistas em formação, que se deparam hoje em dia com um verdadeiro “culto a Lukács”, chamamos a aprender o quanto quiserem com suas lições eruditas, porém sem permitir que sua sombra bloqueie o caminho para a adesão apaixonada ao movimento operário e suas lutas; dizemos enfim, o que a realidade nos exige hoje é que sejamos verdadeiros marxistas revolucionários!

*Publicado originalmente no jornal Palavra Operária n°55

Entrevista de Daniel Angyalossy Alfonso* a revista Contra a Corrente

Prisioneiros políticos do PCB na Casa de Correção em 1937


Revista Contra a Corrente: Habitualmente é costume – mesmo na literatura acadêmica de esquerda - diferenciar Caio Prado Jr. do Partido Comunista Brasileiro; você poderia falar, de acordo com seus estudos em relação ao tema, a respeito das semelhanças ou convergências entre Caio Prado Jr e o Partido Comunista Brasileiro? Você fala em “grande acordo estratégico com o PCB” referindo-se a Caio Prado Jr., poderia explicitar este ponto?

Daniel Angyalossy Alfonso: Caio Prado é reconhecido como o “primeiro” grande crítico da estratégia de Revolução democrático-burguesa defendida pelo Partido Comunista Brasileiro, que não fazia mais do que seguir as ordens da III Internacional sob o comando de Stalin. Como se sabe, a estratégia do PCB se baseava na premissa etapista do desenvolvimento das forças produtivas e concluía que no Brasil as relações de produção não eram capitalistas, mas sim feudais. A conclusão da burocracia soviética, que estava de acordo com seus interesses, era a de que a classe operária não poderia ter uma política de independência de classe, que estivesse no marco da luta revolucionária pelo socialismo. Longe disso, a Revolução democrático-burguesa defendida pelo PCB tinha como objetivo essencial limpar os restos feudais e destravar o país para o desenvolvimento capitalista; tendo pela frente a burguesia nacional, que segundo o PCB tinha interesses materiais qualitativamente distintos dos da burguesia imperialista. Já Caio Prado partia de outra premissa. Para ele, o Brasil sempre esteve atrelado ao desenvolvimento capitalista – o que é, em linhas gerais, correto –, portanto não havia nenhum resto feudal a ser destruído, tratava-se de desenvolver o capitalismo nacional. Essa diferença sempre foi considerada como uma diferença estratégica que separava o historiador de seu partido (muito se escreveu sobre a contraditória relação entre o intelectual e os dirigentes do PCB em suas distintas fases), sendo que uma parte importante dos comentaristas chega a considerar a “disciplina” partidária de Caio Prado como a principal razão para a sua permanência nas fileiras do partido. Ora, não queremos menosprezar sua suposta “disciplina militante”, mas simplesmente não podemos nos contentar com uma resposta desse tipo. O que é muito mais relevante, a chave para a compreensão da proximidade programática entre Caio Prado e o PCB é, antes de tudo, a visão comum que ambos tinham, se não em relação ao passado do Brasil, mas a seu futuro. Tanto o PCB como Caio Prado, apoiando-se na teoria do “socialismo em um só país”, ou seja, na orientação estratégica da burocracia soviética, compartilhavam a ilusão de que o Brasil estaria em uma suposta lista de “países não-maduros” para o socialismo, ou seja, tratava-se justamente de colocar a burguesia nacional à frente da direção nacional para desenvolver o capitalismo e somente depois de toda uma etapa de desenvolvimento das forças produtivas, lutar pelo socialismo. A negativa frente à necessidade de a classe operária tomar o poder, em aliança estratégica com os camponeses e o povo pobre para resolver seus problemas mais essenciais era um acordo capaz de fazer frente à todas as diferenças entre o historiador e seu partido. É esse, em linhas gerais, o “grande acordo estratégico com o PCB e Caio Prado”.

Isso, porém, não pode ofuscar as importantes diferenças entre os dois, como por exemplo, a questão camponesa e a própria visão da revolução. Por exemplo, por incrível que pareça, Caio Prado tinha uma visão muito mais pacífica e linear de “revolução” do que o próprio PCB, mesmo com sua estratégia de conciliação de classes.

Qual o projeto ou programa político de Caio Prado Jr.?

Em poucas palavras, podemos dizer que seu programa político, ou melhor, seu projeto de nação, consiste na superação do “sentido da colonização”, ou seja, na superação de um desenvolvimento interno que esteve sempre pautado pelo papel que o Brasil cumpria de fornecedor de matérias-prima, o que significa relegar os interesses “reais da nação”, ou “os interesses da maioria da população”. A superação do “sentido”, segundo Caio Prado, consiste em todo um projeto de emancipação política e econômica; sendo inclusive que o primeiro passo, ou seja, a emancipação política, realizou-se com a vinda da corte portuguesa fugida da invasão napoleônica em 1808. Dentro dos limites da mais rasa teoria burguesa, que separa mecanicamente o político do econômico, para Caio Prado tratava-se de aprofundar a ruptura com o “sentido” através de uma série de reformas por dentro do regime político burguês, buscando a atuação do Estado no interesse da maioria da população (como se isso fosse possível...), ou seja, através de um Estado atuante. Cabe ao Estado, ao seu entender, tomar as medidas necessárias para dinamizar a economia nacional, priorizando o desenvolvimento do mercado interno (nesse marco a reivindicação de melhores salários e condições de vida é essencial), e os “interesses da nação”. Aqui é importante que não nos esqueçamos da importante influência que os trotskistas da Liga Comunista Internacionalista tiveram sobre a obra do historiador, e principalmente na formulação geral do significado do “sentido da colonização”. O papel que o Brasil cumpria, e de uma forma mais complexa e contraditória, ainda cumpre na divisão internacional do trabalho, foi analisado em linhas gerais cerca de 10 anos antes das primeiras linhas de Caio Prado – Lívio Xavier, dirigente da LCI e o historiador tiveram, até certo ponto, uma relação intelectual amistosa. Como disse, Caio Prado é contrário à estratégia etapista para o Brasil, porém somente para afirmar que o desenvolvimento econômico brasileiro sempre foi puramente capitalista e voltado para interesses alheios, sendo que o que se tratava, era de, digamos, “enraizar” o capitalismo e assim colocá-lo a serviço dos interesses nacionais. Todo esse projeto de nação é fruto de um longo processo de estudos e a firmeza (alguns diriam “dogmatismo”) com que postava suas opiniões; os principais problemas de que tratava eram sempre do mesmo núcleo estratégico, o acabou fazendo com que o historiador se localizasse ora à esquerda, ora à direita do discurso pecebista, uma vez que este partido alterou sua tática política significativas vezes ao longo de sua história. Enquanto podemos visualizar um zigue-zague político do PCB, podemos traçar uma linha reta em relação às posições de Caio Prado.

Ao lermos as obras econômicas de Caio Prado, percebemos o quão influente era a dinâmica capitalista para ele, ou seja, ele realmente acreditava que o capitalismo, em pleno século XX, depois de ter causado duas guerras mundiais, uma enorme Depressão no final dos 20 e começo dos 30, e mais, de ter tido resposta consciente através da Revolução Russa, que as relações de produção capitalista ainda têm papel progressivo a cumprir, e que é possível “administrá-lo” dentro de fronteiras nacionais. Basta somente que consigamos direcionar seu desenvolvimento de acordo com nossos interesses, como inclusive ilustra todo o projeto da Revista Brasiliense, ao longo dos anos 1950.

Caio Prado também é reivindicado como grande defensor da democracia, uma vez que lutou, ainda que à sua maneira, contra a ditadura de Vargas. Quero somente lembrar que a vitória de Vargas foi causa de grande celebração por parte do historiador, que começou sua trajetória política dentro das fileiras do Partido Democrático – expressão do descontentamento com o regime da República Velha. A defesa da democracia como regime ideal era, para o historiador, fruto da compreensão de que somente a democracia seria capaz de oferecer ao conjunto da população a possibilidade de lutar em defesa de melhores condições de vida, pressionar o Estado em direção a políticas mais autônomas, à realização das reformas necessárias para aperfeiçoar a democracia, desenvolver a indústria e estimular o mercado interno; assim estaríamos diante da possibilidade concreta de superar o “sentido da colonização”. Essa é uma visão, que nada tem a ver com o marxismo.

Sua compreensão do que significa um processo revolucionário não vai além de uma soma formal de pequenas reformas dentro dos limites do Estado burguês; a Caio Prado não lhe interessa a derrubada violenta da burguesia e a tomada do poder por parte da classe operária e do povo. O socialismo e o próprio marxismo para o historiador não são mais do que ferramentas que manuseia sem o menor escrúpulo, caso contrário, não teria sido capaz de afirmar categoricamente que o “socialismo não passa de um programa: uma sociedade sem classes é impossível”. A própria Revolução Cubana é ilustrativa, uma vez que lhe impactou fortemente, assim como a toda esquerda. Chega a elogiar fortemente Fidel Castro por sua política que, antes de mais nada, era determinada por objetivos simples, como a derrubada de Somoza, e que foi, através de sua própria ação, avançando em direção à Revolução, como isso não fosse resultado de um processo extremamente contraditório, motorizado pelas pressões das massas cubanas.

RCC: Qual o papel do campesinato na teoria da revolução de Caio Prado Jr.?

DAA: O historiador paulista dá à questão da terra enorme importância. A solução do impasse agrário deveria contar com modificações no campo que visassem o “atendimento de problemas reais da população”. O essencial do problema reside no fato de que a estrutura agrária brasileira, a qual Caio Prado soube bem identificar a relação com grandes latifundiários e o papel que cumpriram para que o Brasil servisse como “fonte de matéria-prima” durante toda sua concatenação enquanto nação e inclusive na República não comporta grande interesse, ou seja, não carece de nenhuma modificação essencial, enfim, estrutural, que permita que o campesinato possa usufruir da terra como lhe parecer melhor. Ao contrário, uma das principais críticas de Caio Prado à importação da teoria revolucionária ao Brasil foi o transplante do termo “campesinato”. Para Caio Prado, se não houve feudalismo, é impossível que haja camponeses e, portanto, o que prima no campo são típicas relações capitalistas, ou seja, como se houvesse somente indústrias enraizadas no campo e ninguém interessado em trabalhar em um pedaço de terra em seu proveito. Essa é, como dissemos, uma importante diferença entre o PCB e Caio Prado, já que o historiador critica a falta de estudo da realidade nacional por parte de seus dirigentes, substituindo-o por simples cópia de programas que nada têm a ver com nossa realidade. Lembremos, porém, que a política agrária do PCB, ao estar subordinada à estratégia de conciliação de classes com uma suposta “burguesia nacional”, estava também ligada aos grandes latifúndios, e assim constituía uma completa traição ao campesinato que reivindicava terra para si. Sendo assim, a chave da questão, para Caio Prado, é convencer os trabalhadores do campo a reivindicar melhores salários e condições de vida, a fim de desenvolver o mercado interno, passo fundamental para a superação do “sentido da colonização”. Não temos como desenvolver neste espaço essa questão da maneira que merece, porém é importante afirmar que tal compreensão teórica lhe levava a não somente não reconhecer a legítima reivindicação histórica por terras de um setor enorme da população – lembremos que até meados dos anos 50, o Brasil ainda era mais agrário do que urbano, como negar a importância e a extensão dessa reivindicação nos turbulentos anos de 50/60. Ao lermos os artigos da revista brasiliense salta à vista a impaciência com que Caio Prado observava a movimentação dos camponeses, temendo por sua radicalização (lembremos de Tromba Formoso, como por exemplo!). Uma compreensão marxista da dinâmica revolucionária no Brasil lhe permitiria concluir que a luta pelo direito ao usufruto da terra por milhões de camponeses era uma luta não contra os latifundiários somente, porém contra a os grandes capitalistas que também lucram com a capitalização da terra, e nesse marco uma luta contra a servil burguesia nacional. Uma luta desse porte somente poderia ser travada com dignidade histórica através da mais sólida aliança com a classe operária, e com sua vanguarda organizada em partido revolucionário. Caio Prado, ao contrário, se liga ideológica e politicamente com a burguesia nacional, (se preferirem com um setor mais ilustrado, mas nem por isso menos burguês), e clamando por calma e comedimento nos enfrentamentos, pela necessária ação “positiva” do Estado no sentido de acalmar os ânimos, pois maiores turbulências somente serviriam à direita.

RCC: Em que medida Caio Prado Jr. chega a encarnar a tão propalada “nacionalização do marxismo”, com que certos estudiosos se referem a ele?

DAA: Acredito que esse debate se presta a muita confusão. A idéia de uma “nacionalização do marxismo” é, em certa medida, tributária da própria visão de Caio Prado em relação à “importação do marxismo” como problema central à elaboração programática dos revolucionários. Como dissemos anteriormente, Caio Prado se colocava contra a tese de revolução democrático-burguesa do PCB, e encarava a debilidade teórica de seu partido como fruto da importação dessa teoria. Nesse marco, é ao localizar-se como crítico à nulidade teórica do PCB e oferecer uma visão alternativa, ainda que dentro do campo do nacional-reformismo, que o historiador consegue destaque e é qualificado como alguém capaz de ligar o marxismo à realidade nacional. Em última instância, Caio Prado muniu-se do essencial da teoria burocrática da III Internacional sob o comando de Stalin, e deu-lhe contornos da realidade nacional. Localiza-se em Caio Prado uma superação, ainda que parcial, da “teoria” da III IC, e é esse o conteúdo que os acadêmicos conferem à expressão “nacionalização do marxismo”, quando se referem a Caio Prado.

Antes de afirmar se Caio Prado nacionalizou o marxismo ou não, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: a quem servem as idéias que ele defende? Servem de amálgama teórico para a esquerda, que se contenta em ser esquerda reformista, revestir-se de certo conteúdo marxista e defender os interesses históricos da burguesia, e não da classe operária, os da revolução socialista, os do comunismo.

Quando nos referimos ao marxismo, nos referimos a uma ferramenta teórica fruto da generalização das experiências da classe operária e do povo oprimido, durante um período, conturbado e repleto de contradições, de mais de 200 anos de luta de classes sob o capitalismo. A tarefa dos intelectuais revolucionários não é a de nacionalizar o marxismo, mas à luz dos aportes de grandes dirigentes revolucionários, como Lênin e Trostky, e da análise dos principais fenômenos da luta de classes, ser capaz de analisar o desenvolvimento da realidade e aportar teórica, estratégica e politicamente, em defesa dos interesses da revolução socialista. Qualquer debate acerca da nacionalização do marxismo, ou seja, de crítica à teoria do PCB e a influência stalinista por fora dessa visão mais geral, serve nada mais que para embelezar o legado de Caio Prado.

Quero aproveitar a oportunidade para dizer que a revista Iskra, no marco da amplíssima questão de contribuir para a recriação revolucionária do marxismo, enxerga como uma tarefa fundamental a crítica marxista aos principais expoentes de visões que afastam a teoria marxista da classe operária, ou o que é o mesmo, que afastam esta das suas tarefas revolucionárias, como as distintas defesas da idéia dos “países não-maduros” para a revolução socialista etc. Por isso nos dedicamos em nosso primeiro número a criticar não só Caio Prado Jr., como também Lukács, que é outra referência quase inconteste em setores da esquerda brasileira.


* Daniel Angyalossy Alfonso é editor da Revista Iskra, autor do artigo Caio Prado Júnior e a Gênese do Marximos Reformista no Brasil e militante da LER-QI

sexta-feira, 3 de abril de 2009

REVISTA ISKRA : Uma revista de idéias e cultura para os novos tempos

Imagem de El Lissitzky


Por Gilson Dantas
*


Nas décadas mais recentes, de ofensiva do grande capital conta os salários e as conquistas dos trabalhadores, nenhuma rebelião popular e operária chegou a tomar a forma de revolução. O impacto desse refluxo revolucionário na esfera intelectual, da cultura e do pensamento crítico, traduziu-se em uma verdadeira regressão, com o marxismo vivendo uma duríssima estiagem.
A ofensiva ficou por conta do pensamento “único” neoliberal em todas as suas facetas reacionárias, toscas e anti-revolucionárias e, segundo seu discurso, o marxismo se tornara pouco mais que uma “relíquia pré-histórica”, uma teoria vencida pelo tempo, pela história, entretenimento de militantes políticos e/ou acadêmicos viciados em sessão-nostalgia, em recordações de Lenin, Trotski e do velho e simpático Karl Marx. A reação neoliberal, rápida e sistematicamente, tratou de emplacar no granito velhos clichês como o do fim do sonho socialista e, em especial teses como a de amalgamar Stalin com Lenin, Trotski com o sectarismo incurável e, quanto a Marx foi deixado num canto empoeirado, como objeto de pesquisas.

O pensamento da classe dominante (fim do comunismo, triunfo do liberalismo e do mais cru individualismo) penetrou, viscoso, por todos os poros da sociedade ao mesmo tempo em que os seus aparelhos ideológicos – escola, igreja, mídia etodas as instituições da ordem – destilavam asneiras pós-modernas, pós-industriais e liberais com status de respeitabilidade acadêmica, ao mesmo tempo em que a revolução socialista, o proletariado e o partido revolucionário, quando mencionados, eram com deboche ou delírio. Em suma: o marxismo estava na berlinda, no estio, tinha que tornar-se uma miragem.

No entanto, o pior de tudo, para o pensamento inconformado e inquieto da juventude e de todo aquele que teimou em manter acesa a chama, foi o seguinte: o marxismo, obviamente continuou existindo e resistindo – no mundo do capital não há como cravar a estaca no peito do marxismo – só que o marxismo desses tempos e propagado no nosso país (inclusive o que vinha de antes) contribuía para agravar esse estado de coisas.

Vigorava um marxismo com tais características que, mesmo quando brilhava, mesmo quando se empenhava em aprofundar aspectos e avançar intelectualmente, terminava por estabelecer acordos, pactos e amálgamas que, como regra, limitavam ou castravam sua possibilidade de instaurar uma tradição efetivamente revolucionário-marxista, de ruptura estratégica e programática com o pensamento burguês-reformista e com o ultra-esquerdismo. Isso a despeito da coragem e abnegação de seus autores ou até de suas intenções.

Em partidos, universidades, no movimento sindical, na intelectualidade combativa, a regra foi esta: o marxismo estabelecido vinha amalgamado com o possibilismo (só se luta pelo que “é possível” conquistar), pelo excessivo respeito e até subserviência a tudo que parecesse marxista, aos ícones estabelecidos na academia, em suma, prevalecia a veneração à fraseologia marxista mesmo que ela viesse – e esta era a regra – desacompanhada de preocupações práticas (estratégicas, programáticas), mesmo que ela não rompesse com o horizonte burguês-democrático e passasse ao largo da preocupação com o proletariado para além do horizonte “pestista” (incapaz de primar pela organização independente da classe trabalhadora).

Este foi o caso, para citar apenas um exemplo, do marxismo luckacsiano em nossa terra, onde ganhou grande visibilidade na esquerda (ao contrário de países como a Argentina onde o peso de Luckács é inexpressivo). E foi também o caso de verdadeiros ícones e tradições intocáveis do marxismo brasileiro, como Caio Prado Júnior, na verdade o fundador de uma das variantes do nacional-reformismo marxista.

Em uma frase: a ofensiva da miséria da teoria liberal é pós-tudo somou-se, de alguma forma, com a reprodução ampliada de um marxismo “nativo” com forte tendência à conformação e adaptação ao entorno reformista, conciliador. Neste ambiente intelectual prevalecia um certo pacto de não-agressão mútua no qual, por exemplo, a crítica principista frontal – honesta, argumentada, referenciada – não era bem vista. O ecletismo, o amálgama de determinadas idéias, que na prática revolucionária se revelam antagônicas, o respeito à tradição (leia-se, muitas vezes: visibilidade acadêmica) se impunha como o fenômeno intelectual mais natural do mundo.

A grande conseqüência negativa desse processo veio sendo o seu impacto na formação marxista das novas gerações de revolucionários, quadabsolutamente necessários nos combates que se anunciam nesta grande crise do capitalismo que se constrói aos olhos de todos nós. Não tivemos revistas de combate político, revistas de partido, não se desmistificou abertamente o “marxismo” de colaboração de classes, não se combateu com todas as armas da crítica (e da prática) ao modo petista de militar e de pensar (de pensar as lutas sociais e o papel de sujeito do proletariado). Perdemos em formação marxista revolucionária, por mais que o marxismo tenha ocupado espaço acadêmico, espaço literário e presença nos movimentos sociais sindicais nessa época de vacas magras, e por mais que seja um fato inegável a existência e o ativismo de autores marxistas importantes e úteis em vários cantos do Brasil.

A revista ISKRA surge com a mais apaixonada intenção de contribuir para mudar esse quadro. De somar, na luta contra um relógio que passará a correr mais rápido nesses novos tempos históricos, no sentido de construção de um marxismo irredutivelmente vinculado às lutas operárias, à estratégia soviética e anti-capitalista. E ISKRA pretende postar-se, pelo que se desprende da leitura do seu número 1, na esfera intelectual, em aberto e sincero combate contra a tradição marxista que mesmo quando critica à burguesia e ao stalinismo, deixa a porta aberta à conciliação com a burguesia e com o stalinismo (através do ecletismo, da crítica das aparências ou até do reiterado escorregão teórico de confundir bolchevismo com stalinismo, Lenin com Stalin, socialismo com ausência de democracia soviética, ou de regularmente renunciar à estratégia em nome da “tática” e assim por diante).

Em seu primeiro número é evidente o esforço da revista ISKRA – e a meu ver bem sucedido – em romper com essa tradição, a mesma que em nome de Marx e da luta pelo socialismo, termina – inadvertidamente ou não –, por desarmar a luta do marxismo revolucionário em determinado sentido. Ou seja, desarmá-la contra todo pensamento que dificulte à classe trabalhadora, enxergar - através da neblina do palavreado intelectualizado -, quem é seu aliado e quem não é, quem é apenas companheiro de viagem e quem pode ir até o fim na luta, com quem e com o quê pode haver acordo político, onde está o debate estratégico e qual a coerência da tática cm ele, com o programa.

Um breve olhar sobre a recente tradição acadêmica de esquerda irá perceber o quanto essa confusão é reinante: autores com o Lukács (e seu discípulo Mészàros), Caio Prado Júnior, Chico de Oliveira, Rui Mauro Marini, Mandel, Zizek e outros são inalcançáveis pela crítica aberta e desmistificadora – mesmo que se leve em conta o legítimo respeito que cada um deles mereça – ao mesmo tempo em que impera, na outra ponta, o “diálogo” sistemático e permanente com autores como Celso Furtado, Habermas Max Weber e outras celebridades do pensamento acadêmico-burguês, sem situá-los no seu papel e seu lugar de classe ou seu papel na luta revolucionária ou contra-revolucionária (caso de Weber). Nem é preciso mencionar autores da moda – que entram e saem da moda, como Negri ou Mészàros – mas cuja crítica a seu pensamento costuma limitar-se a aspectos menores. Em suma, esta tradição do marxismo no Brasil – que na verdade vem de longa data – deixou de construir uma crítica que ponha de pé, como primeiro critério, a necessidade de ir construindo politicamente, teoricamente, estrategicamente e intelectualmente, a independência política do proletariado, as idéias da revolução proletária, socialista. Nada disso se fará sem a polêmica fraterna porém comprometida com a defesa irredutível de princípios.

O número 1 da revista ISKRA é um exemplo neste sentido. Pelo limite de espaço tomo o exemplo de apenas um de seus artigos de fôlego. A revista traz cinco textos: o primeiro sobre a crise do atual movimento estudantil e a aliança estudantes-trabalhadores; uma crítica ao pensamento de Caio Prado Júnior e o marxismo reformista; um comentário ao uso ideológico, nas faculdades de ciência política, da revolução norte-americana; um texto sobre o surrealista Benjamin Péret que esteve no Brasil antes da II Guerra e, finalmente, o artigo sobre Lukács e o stalinismo que passo a comentar.

Este texto reflete bem (assim como o texto sobre Caio Prado Júnior e demais) o novo patamar de debate marxista ao qual a revista quer contribuir para construir. Tomando um marxista de grande influência intelectual sobre gerações que se formaram durante e depois da Guerra Fria e, sem deixar de reconhecer seus méritos, por exemplo, em estudos exegéticos de Marx, Edison Salles (ISKRA) vai desvelando um a um – de forma muito bem fundamentada – os limites do pensamento lukacsiano. Não se trata de um balanço do positivo e do negativo de Lukács, o que não faria qualquer sentido.

O que fica evidente, no trabalho de pesquisa e de ourives de Salles, é que o fio condutor presente por trás do mito luckacsiano é o de um pensamento que, política e estrategicamente não se põe dentro da perspectiva revolucionária do proletariado. Inteligente, incansável, refinado em suas análises literárias, sincero defensor do realismo clássico na literatura, profundo conhecedor de idéias de Marx e Engels, grande professor de filosofia (em obras como O assalto à razão), crítico a Stalin no fim de sua vida e tido como um autor marxista não-dogmático, no entanto, o eixo teórico-político do nosso pensador, Lukács, é o de adesão (e jamais oposição de esquerda) ao pensamento burocrático dentro movimento comunista internacional (leia-se aqui: stalinista).

Lukács esforçou-se permanentemente em legitimar, amparar e justificar teoricamente o pensamento contra-revolucionário de Stalin, confundi-lo com Lenin e, no fim da vida – crítico a Stalin – aderiu ao neo-stalinista Togliatti e aos grandes PCs eurocomunistas (praticantes da colaboração e traição de classe frente à sua classe operária). Jamais foi conseqüente na crítica a Stalin e defendia a reforma da burocracia, e, em momento algum, a revolução política para repor os conselhos operários no comando da URSS. Inimigo visceral de Trotski até a morte, foi sempre amigo e respeituoso em sua relação com autores da estirpe de Max Weber e os quadros stalinistas cúmplices dos processos de Moscou da década de 1930.

O artigo de Salles, além de escrito de forma elegante, reflete (assim como os demais, da revista de autoria de Daniel Angyalossy, Ricardo Festi e Marcelo Torres, Ciro Tappeste, Leandro Ventura) o sentido e a novidade da revista ISKRA para o marxismo revolucionário brasileiro. Em seus vários textos, argumentadamente, a revista ISKRA procura mostrar, na prática, que a tradição marxista revolucionária só poderá ser construída através da desconstrução do velho edifício do marxismo reformista, do marxismo que não faz a crítica essencial ao stalinismo (como “teoria” do socialismo num só país, da conciliação de classe, do socialismo sem sovietes etc), ao marxismo autonomista, ao marxismo sem partido e sem proletariado e assim por diante.

Com toda certeza ISKRA concretiza um tempo de revistas de partido, que tomam posição (tomam partido) polemicamente em torno dos temas mais candentes para a construção política, teórica, estratégia, cultural de uma nova geração que pretenda, sem ser sectária, alinhar-se intransigentemente nos princípios, assumir-se como irredutível naquilo que o marxismo tem de irredutível, somando na construção de ferramenta crítica que, ao ser utilizada na prática, em vez de oxidada ou travada, esteja desembaraçada para seu uso pelos trabalhadores e seus representantes intelectuais e políticos.


*Gilson Dantas é médico e doutor em sociologia pela Universidade de Brasília.

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