domingo, 26 de abril de 2009

O PENSAMENTO DE CAIO PRADO JÚNIOR





Intervenção de Daniel A. Alfonso
no debate de lançamento da Revista ISKRA,
na universidade de São Paulo


No dia 31 de março foi realizado o debate O PENSAMENTO DE CAIO PRADO JÚNIOR, como atividade de lançamento da revista Iskra na Universidade de São Paulo. O debate contou com a presença dos professores da USP Lincoln Secco, Bernardo Ricupero e Rodrigo Ricupero, além de Daniel A. Alfonso, editor da Revista Iskra. Foi uma importante oportunidade para refletir sobre o pensamento de Caio Prado Jr, integrante do PCB e um dos mais importantes intelectuais brasileiros a se inspirarem no marxismo. Apesar das diferentes interpretações acerca de sua obra, o debate, assistido por mais de 85 pessoas, teve como fundamento uma reflexão de alto nível. Impossibilitados de dar conta da rica discussão nas páginas deste jornal, expomos abaixo um resumo da primeira intervenção de Daniel A. Alfonso.[1]

Muito sinteticamente, podemos resumir o eixo ordenador do pensamento de Caio Prado na sua busca por meios que viabilizassem a superação do nosso “sentido da colonização”. Esse sentido, iniciado com a extração do pau-brasil mas que segundo o historiador se agrava inclusive com a entrada massiva de capital imperialista no século XX, se daria pelo fato do Brasil sempre servir como fonte de matérias-primas “para o abastecimento de mercados estranhos”, renegando portanto os reais interesses nacionais.

A visão em relação á revolução é distinta entre Caio Prado e o PCB. Seguindo as conclusões a que chega estudando o passado nacional, Caio Prado afirma que a dinâmica de ciclos econômicos para exportação nunca permitiu que o capitalismo realmente fincasse pé em solo nacional. Não há feudalismo a ser superado, mas por outro lado a economia brasileira tampouco era verdadeiramente capitalista, no sentido em que Caio Prado entendia o capitalismo. Sendo assim, nas palavras do historiador, “o capitalismo brasileiro é pouco mais que um forma exterior e sobreposta”. A superação de nosso sentido, está para Caio Prado, profundamente ligado ao enraizamento do capitalismo no Brasil, ou seja, à promoção de uma dinâmica relação entre produção e consumo que viesse a dar conta de atender às “reais necessidades da população”. A constituição, e antes disso, a promoção por parte do Estado de ferramentas que viabilizassem a constituição de um sólido mercado interno é para o historiador tarefa urgente - para o qual a política brasileira, perdida entre teorias alheias e a ineficácia, baixo nível cultural e um parco conhecimento da realidade brasileira - fecha os olhos. Caio Prado dá especial atenção à dois elementos para enraizar o capitalismo e fortalecer o mercado interno, sendo o primeiro a questão agrária. Caio Prado, ao afirmar que o Brasil é capitalista, unilateraliza essa posição e chega á conclusão de que não existem camponeses no Brasil, e mais, escreve com todas as letras no famoso livro “A Revolução Brasileira”, que a luta pela terra quase não existe no Brasil, e isso quando de Tromba e Formoso! Portanto, a reforma agrária, para o historiador, seria a combinação da extensão da legislação trabalhista para o campo e da partilha da extrema concentração de terras. Este é um ponto nevrálgico de seu pensamento, pois Caio Prado, na falta de uma perspectiva revolucionária que visse na luta pela reforma agrária um meio fundamental da classe operária aliar-se ao povo do campo, no marco da luta por hegemonizar a nação e instaurar um Estado de transição dirigido por trabalhadores e camponeses, enxergava a divisão das terras através de um processo legal, dirigido pelo Estado burguês, que se iniciasse nos pontos fracos da estrutura fundiária, as parcerias, enfim, um processo pacífico de divisão das terras improdutivas. Era sua preocupação evitar maiores dificuldades às atividades produtivas e em suas palavras, deveria-se evitar, “no processo da divisão, a perturbação das atividades produtivas e [a] desorganização dos estabelecimentos”. Essa visão talvez balize toda proposta de reforma agrária da esquerda reformista até hoje. O segundo aspecto ao qual Caio Prado dá importância para dinamizar o mercado interno é a industrialização, que chega a dizer que constituem a “presença de formas econômicas que apontam na direção de um desenvolvimento diferente do sistema colonial”.

Em relação ao golpe de 64, queremos comentar a visão de Caio Prado pelo fato de muitos militantes de esquerda, e inclusive aqueles que estão começando a se politizar, serem influenciados pelo balanço que o historiador faz do golpe, considerado de esquerda por muitos, quando na verdade se trata de uma visão bastante conservadora. Sobre a estrutura política brasileira em geral, Caio Prado afirmava que parte central do problema era que não existia correspondência entre as instituições políticas e as necessidades da população. Critica o PCB por não dar conta de responder profundamente essa questão, e previamente ao golpe, de se ancorar na defesa de Goulart, um demagogo na visão do historiador. O golpe teria sido resultado da combinação entre agitação estéril por parte da esquerda – que insistia em teorias importadas –, da classe operária e dos trabalhadores do campo. Caio Prado parte de um elemento de crítica correto: o de que a esquerda estava demasiadamente atrelada ao governo, porém o faz desde um ponto de vista completamente reformista. Quiçá justamente por isso, fecha os olhos em relação ao peso que seu partido tinha na classe operária na década de 60, chegando a afirmar que o proletariado agiu como “simples massa de manobras táticas, manejada, mais que orientada e dirigida propriamente, por minorias efetivamente ativas que não passam muitas vezes de ínfimos grupos.” A história nos mostra que não foi bem assim. O PCB tinha forte inserção na classe operária, sendo que por diversas vezes a classe operária se chocou contra o PCB no curso de suas lutas, e sua política de conciliação de classes, sintetizada na defesa de Goulart, foi o principal responsável pela derrota de uma batalha não-dada e instauração da ditadura.
No que diz respeito à noção de socialismo e partido revolucionário, Caio Prado retira seus ensinamentos diretamente do stalinismo. Por exemplo, em um livro publicado após viagem à União Soviética, afirma categoricamente que “nenhuma organização social ( pelo menos as já de certa forma evoluídas e por isso mesmo complexas) pode dispensar uma direção. Nestas condições deverá surgir na própria sociedade que virá, para substituir a sociedade burguesa, uma diferenciação entre o grupo investido desta direção e o resto da população.” A conclusão que Caio Prado retira daí não poderia ser mais clara quando diz que “o socialismo portanto nunca passará de um programa: uma sociedade sem classes é impossível”. Isso em relação aos países desenvolvidos, e à União Soviética em particular, pois longe de sequer criticar os brutais métodos da burocracia soviética, afirma que “é incontestável que o regime soviético representa a mais perfeita comunhão entre governados e governantes”.

Já em relação aos países subdesenvolvidos, e em particular ao Brasil, apesar das análises de Caio Prado e do PCB em relação às tarefas da revolução, ambos compartilhavam um acordo estratégico profundo: o de que o Brasil era um país não-maduro para a revolução socialista. È certo que ao PCB era funcional ter em suas fileiras um intelectual do porte de Caio Prado, e também é correto afirmar que Caio Prado enxergava no PCB um exemplo de dedicação e militância, mas esses elementos não são superiores à esse acordo estratégico. Caio Prado afirma categoricamente: “A socialização dos meios de produção (...) é certamente prematura nos países subdensenvolvidos com seu baixo nível industrial e a larga fragmentação das atividades econômicas.” Para o PCB tratava-se então de organizar os trabalhadores e os camponeses para auxiliar a burguesia a fazer sua revolução e instaurar o capitalismo; para Caio Prado, partindo de uma análise muito mais sofisticada, tratava-se de aprofundar-se no conhecimento da realidade nacional, aperfeiçoar as instituições políticas, voltar a produção para os interesses nacionais, desenvolver um robusto mercado interno e enraizar o capitalismo, sendo a democracia o regime capaz de dar vazão à essas transformações. Em outras palavras, o aperfeiçoamento do capitalismo, pelas mãos da burguesia que deve sua existência à apropriação do trabalho excedente da classe operária, é próprio caminho ao socialismo. E essa é uma visão completamente não-marxista. Esta discussão de países maduros e não maduros para o socialismo já era velha e havia sido respondida pela história. No começo do século passado, quando a Revolução Russa se aproximava, a maioria dos dirigentes social-democratas, com distintos fundamentos, negavam a ditadura do proletariado e a conquista de um Estado operário. Trotsky respondia, e a história lhe deu razão, que as condições internacionais estavam mais do que maduras para a revolução socialista e que os países atrasados poderiam chegar antes á tomada do poder, porém mais tarde ao socialismo. Rússia, depois China o leste europeu, Cuba, etc, confirmaram este prognóstico.

Apesar da obra de Caio Prado ter cumprido, não sem enormes contradições, o papel de uma historiografia que toma o materialismo como base da compreensão da realidade, sendo trechos de suas obras realmente brilhantes, acreditamos que Caio Prado não pode ser considerado um autor marxista, nem muito menos o maior marxista brasileiro; isso no sentido revolucionário do termo. É responsabilidade daqueles que se colocam no campo do marxismo desmascarar em todas as oportunidades a hipocrisia da burguesia frente aos problemas do país, lutar para que a classe operária passe a confiar somente em suas próprias forças, e assim consiga dar importantes passos para conquistar a hegemonia dos trabalhadores do campo e da pequena-burguesia urbana e rural. Os marxistas não podem virar as costas à responsabilidade de aportar para colocar de pé um partido revolucionário, que esteja fundido com a classe operária e saiba aproveitar as oportunidades históricas que se avizinham. Essa perspectiva, em tempos da maior crise econômica desde 1929, não poderia ser mais atual.


1 As citações foram retiradas de Esboço dos Fundamentos da Teroria Econômica, URRS um mundo Novo, A Questão Agrária e A Revolução Brasileira, todas obras de Caio Prado Júnior

assista ao vídeo do debate:

parte I - http://www.youtube.com/watch?v=Z9HrhpFwcKg

parte II - http://www.youtube.com/watch?v=4QNzAkKLTlo

parte III - http://www.youtube.com/watch?v=fb47OVnzusA&feature=related

domingo, 5 de abril de 2009

Lançamento da Revista Iskra na Unesp de Marília

DEBATE: LUKÁCS E O STALINISMO*


No dia 24 de março, na UNESP – Marília, ocorreu o debate “Lukács e o stalinismo”, como parte dos eventos de lançamento da revista Iskra nº 1. O debate reuniu o camarada Edison Salles (LER-QI) e Antônio Carlos Mazzeo, docente do câmpus e da direção do PCB. Discutindo o legado de Lukács e a relevância de sua contribuição ao marxismo, o debate teve momentos acalorados que refletiam a oposição de princípios entre os debatedores sobre como avaliar a obra de Lukács. Na impossibilidade de expressar aqui o debate em seu conjunto, publicamos abaixo um resumo da intervenção de Edison.

O tema da atividade, Lukács e o stalinismo, é também o título do artigo publicado na revista ISKRA. Essa revista é elaborada pela juventude universitária da LER-QI, que buscamos nos constituir como uma nova geração de intelectuais militantes revolucionários. E então cabe a pergunta: porque iniciar o projeto encarnado na revista ISKRA polemizando com autores como Lukács e Caio Prado Jr? Até mesmo alguns companheiros nos questionaram, por que não começar polemizando com, por exemplo, os autores pós-modernos que tanto peso possuem nas universidades?

Falando muito sinteticamente, poderia dizer que há dois motivos centrais para escolher a polêmica com Lukács (sobre Caio Prado Jr. não poderemos nos estender aqui).

O primeiro motivo tem a ver com uma característica que salta aos olhos quando observamos o panorama intelectual brasileiro. É que, mesmo no momento de maior defensiva histórica do marxismo, quando a burguesia imperialista desencadeou uma enorme ofensiva ideológica afirmando que o socialismo havia morrido e com ele também o marxismo – e é preciso reconhecer que até hoje sentimos o peso dessa ofensiva, basta ver a quantidade de jovens combativos e sinceramente decididos a lutar por uma sociedade que supere o capitalismo, que caem nas armadilhas do discurso autonomista e sua negação da política, da luta de classes, da necessidade de construir um partido revolucionário... – mesmo neste momento amplamente desfavorável para o marxismo, ele não foi completamente eliminado do cenário intelectual brasileiro. Ao contrário, em diversas universidades ele encontrou nichos onde pudesse permanecer, com a realização dos mais diversos eventos (palestras, debates, etc, que vêm aumentando ano a ano) e com a produção de dezenas de trabalhos a cada ano (projetos de iniciação científica, monografias, teses de mestrado e doutorado, até em alguns casos livre docência como recentemente defendeu o próprio prof. Mazzeo). Por outro lado, o preço a pagar por essa permanência foi muito alto, pois: a) esse marxismo se distanciou enormemente da classe operária, que no melhor dos casos foi tratada como mero “objeto de estudo”; b) os temas diretamente revolucionários foram praticamente excluídos de sua pauta de reflexão (sobretudo os problemas de estratégia, tática, programa, etc).

Num momento em que a força objetiva da própria crise começa a colocar novamente a questão operária no centro da cena política (seja com as notícias diárias sobre as demissões em massa em todo o mundo, seja através de as primeiras respostas operárias à crise em ações como a recente greve geral que mobilizou milhões de trabalhadores da França), dá para perceber facilmente a insuficiência desse “marxismo” que encontramos nas universidades (e veremos como a crítica a Lukács está ligada a isso).

O segundo motivo está menos ligado a características particulares brasileiras, e nesse sentido tem raízes mais profundas. É que a propaganda burguesa que proclamou furiosamente o fim do socialismo não estava “pendurada no ar”. Ao contrário, ela se sustentava no fato de que o capitalismo foi restaurado nos países onde a burguesia chegou a ser expropriada – me refiro à Rússia, ao Leste europeu, à China - sem que para isso fosse preciso detonar uma única bomba ou dar um único tiro; de que a restauração capitalista tenha se dado a partir das próprias contradições de sociedades que estavam estagnadas devido ao domínio totalitário de burocracias que sufocavam toda atividade operária, e com isso também impediam o próprio desenvolvimento econômico.

O que quero dizer com isso é que hoje todos nós que nos engajamos na luta pelo fim do capitalismo, temos um enorme desafio que é recuperar o marxismo e devolver às massas, em primeiro lugar aos trabalhadores mais avançados, a idéia de que é possível destruir esse sistema decadente e substituí-lo por uma verdadeira democracia de massas apoiada sobre a auto-organização dos trabalhadores. Mas para fazer isso, para devolver uma perspectiva revolucionária aos trabalhadores, e também à juventude, temos que ajustar contas com os enormes desvios de rota que se fizeram em nome do marxismo, e demonstrar que aquelas burocracias eram inimigas de morte do verdadeiro marxismo.

E aqui entra o Lukács. Não porque ele defendesse toda a concepção dogmática e mecanicista imposta pela “doutrina oficial” da burocracia da URSS. Mas justamente porque ele usava sua enorme erudição – tanto em termos das obras clássicas de Marx e Engels, como em relação à cultura ocidental em geral, desde os gregos e passando pelo renascimento e a filosofia clássica alemã –, usava essa erudição para dar uma nova legitimação ao poder das burocracias governantes na URSS e no Leste europeu.

E isso não apenas porque ele silenciou sobre inúmeras atrocidades perpetradas por essas burocracias governantes (como mostramos na revista). Mas porque ele emprestou, até o fim da vida e no curso de sua sinuosa trajetória, emprestou o seu prestígio como pensador, e seu refinamento, para a defesa de vários dos pilares teórico-políticos sobre os quais a burocracia se sustentou.

Para ficar em alguns exemplos, que talvez sejam os mais significativos: Ele defendeu a) a teoria do “socialismo num só país”; b) a teoria da Frente Popular (colaboração de classes com a burguesia em nome da luta contra o fascismo); c) o Pacto de Varsóvia (isto é, a subordinação completa dos países do Leste à burocracia do Moscou, como vemos nas críticas a Imre Nagy no livro “Pensamento Vivido”); d) a “coexistência pacífica” com o imperialismo (chamada por ele de “nova forma da luta de classes”, por exemplo no livro “Conversando em Lukács”). Também não podemos deixar de mencionar que ele, em diversos escritos, corrobora a visão da burocracia de que a Oposição de Esquerda (especialmente os trotskistas) era o “principal inimigo”, ora considerada como “agente do fascismo”, ora como “agente do imperialismo norte-americano” (por exemplo, em “A Destruição da Razão”, entre outras obras).

Por outro lado, é preciso “equilibrar” nossa crítica dizendo que algumas idéias levantadas por Lukács, e defendidas por alguns lukacsianos brasileiros, possibilitaram que tenhamos nos encontrado no mesmo lado da trincheira em vários combates ideológicos que tivemos que travar nos últimos anos. Em especial, duas idéias: a) a volta a Marx, que apesar de que criticamos quando tomada de maneira unilateral (como se fosse possível dar um salto mortal por sobre mais de 100 anos de história do movimento operário internacional), fornece elementos para que nos reapropriemos do que há de vivo, de dialético, de revolucionário no pensamento de Marx, em contraposição às visões dogmáticas e mecânicas que imperaram sob o stalinismo; b) a centralidade do trabalho, que permitiu combater corretamente as diversas vertentes que definiam que as novas tecnologias teriam levado ao “fim do trabalho”, ou então aquelas que diziam que a centralidade da classe trabalhadora havia se perdido no labirinto dos “novos movimentos sociais”.

Porém num momento em que a realidade exige respostas audazes dos marxistas, achamos que vale a pena convidar os lukacsianos a dar mais um passo a frente na superação dos impasses deixados pelo “mestre”. E aos jovens marxistas em formação, que se deparam hoje em dia com um verdadeiro “culto a Lukács”, chamamos a aprender o quanto quiserem com suas lições eruditas, porém sem permitir que sua sombra bloqueie o caminho para a adesão apaixonada ao movimento operário e suas lutas; dizemos enfim, o que a realidade nos exige hoje é que sejamos verdadeiros marxistas revolucionários!

*Publicado originalmente no jornal Palavra Operária n°55

Entrevista de Daniel Angyalossy Alfonso* a revista Contra a Corrente

Prisioneiros políticos do PCB na Casa de Correção em 1937


Revista Contra a Corrente: Habitualmente é costume – mesmo na literatura acadêmica de esquerda - diferenciar Caio Prado Jr. do Partido Comunista Brasileiro; você poderia falar, de acordo com seus estudos em relação ao tema, a respeito das semelhanças ou convergências entre Caio Prado Jr e o Partido Comunista Brasileiro? Você fala em “grande acordo estratégico com o PCB” referindo-se a Caio Prado Jr., poderia explicitar este ponto?

Daniel Angyalossy Alfonso: Caio Prado é reconhecido como o “primeiro” grande crítico da estratégia de Revolução democrático-burguesa defendida pelo Partido Comunista Brasileiro, que não fazia mais do que seguir as ordens da III Internacional sob o comando de Stalin. Como se sabe, a estratégia do PCB se baseava na premissa etapista do desenvolvimento das forças produtivas e concluía que no Brasil as relações de produção não eram capitalistas, mas sim feudais. A conclusão da burocracia soviética, que estava de acordo com seus interesses, era a de que a classe operária não poderia ter uma política de independência de classe, que estivesse no marco da luta revolucionária pelo socialismo. Longe disso, a Revolução democrático-burguesa defendida pelo PCB tinha como objetivo essencial limpar os restos feudais e destravar o país para o desenvolvimento capitalista; tendo pela frente a burguesia nacional, que segundo o PCB tinha interesses materiais qualitativamente distintos dos da burguesia imperialista. Já Caio Prado partia de outra premissa. Para ele, o Brasil sempre esteve atrelado ao desenvolvimento capitalista – o que é, em linhas gerais, correto –, portanto não havia nenhum resto feudal a ser destruído, tratava-se de desenvolver o capitalismo nacional. Essa diferença sempre foi considerada como uma diferença estratégica que separava o historiador de seu partido (muito se escreveu sobre a contraditória relação entre o intelectual e os dirigentes do PCB em suas distintas fases), sendo que uma parte importante dos comentaristas chega a considerar a “disciplina” partidária de Caio Prado como a principal razão para a sua permanência nas fileiras do partido. Ora, não queremos menosprezar sua suposta “disciplina militante”, mas simplesmente não podemos nos contentar com uma resposta desse tipo. O que é muito mais relevante, a chave para a compreensão da proximidade programática entre Caio Prado e o PCB é, antes de tudo, a visão comum que ambos tinham, se não em relação ao passado do Brasil, mas a seu futuro. Tanto o PCB como Caio Prado, apoiando-se na teoria do “socialismo em um só país”, ou seja, na orientação estratégica da burocracia soviética, compartilhavam a ilusão de que o Brasil estaria em uma suposta lista de “países não-maduros” para o socialismo, ou seja, tratava-se justamente de colocar a burguesia nacional à frente da direção nacional para desenvolver o capitalismo e somente depois de toda uma etapa de desenvolvimento das forças produtivas, lutar pelo socialismo. A negativa frente à necessidade de a classe operária tomar o poder, em aliança estratégica com os camponeses e o povo pobre para resolver seus problemas mais essenciais era um acordo capaz de fazer frente à todas as diferenças entre o historiador e seu partido. É esse, em linhas gerais, o “grande acordo estratégico com o PCB e Caio Prado”.

Isso, porém, não pode ofuscar as importantes diferenças entre os dois, como por exemplo, a questão camponesa e a própria visão da revolução. Por exemplo, por incrível que pareça, Caio Prado tinha uma visão muito mais pacífica e linear de “revolução” do que o próprio PCB, mesmo com sua estratégia de conciliação de classes.

Qual o projeto ou programa político de Caio Prado Jr.?

Em poucas palavras, podemos dizer que seu programa político, ou melhor, seu projeto de nação, consiste na superação do “sentido da colonização”, ou seja, na superação de um desenvolvimento interno que esteve sempre pautado pelo papel que o Brasil cumpria de fornecedor de matérias-prima, o que significa relegar os interesses “reais da nação”, ou “os interesses da maioria da população”. A superação do “sentido”, segundo Caio Prado, consiste em todo um projeto de emancipação política e econômica; sendo inclusive que o primeiro passo, ou seja, a emancipação política, realizou-se com a vinda da corte portuguesa fugida da invasão napoleônica em 1808. Dentro dos limites da mais rasa teoria burguesa, que separa mecanicamente o político do econômico, para Caio Prado tratava-se de aprofundar a ruptura com o “sentido” através de uma série de reformas por dentro do regime político burguês, buscando a atuação do Estado no interesse da maioria da população (como se isso fosse possível...), ou seja, através de um Estado atuante. Cabe ao Estado, ao seu entender, tomar as medidas necessárias para dinamizar a economia nacional, priorizando o desenvolvimento do mercado interno (nesse marco a reivindicação de melhores salários e condições de vida é essencial), e os “interesses da nação”. Aqui é importante que não nos esqueçamos da importante influência que os trotskistas da Liga Comunista Internacionalista tiveram sobre a obra do historiador, e principalmente na formulação geral do significado do “sentido da colonização”. O papel que o Brasil cumpria, e de uma forma mais complexa e contraditória, ainda cumpre na divisão internacional do trabalho, foi analisado em linhas gerais cerca de 10 anos antes das primeiras linhas de Caio Prado – Lívio Xavier, dirigente da LCI e o historiador tiveram, até certo ponto, uma relação intelectual amistosa. Como disse, Caio Prado é contrário à estratégia etapista para o Brasil, porém somente para afirmar que o desenvolvimento econômico brasileiro sempre foi puramente capitalista e voltado para interesses alheios, sendo que o que se tratava, era de, digamos, “enraizar” o capitalismo e assim colocá-lo a serviço dos interesses nacionais. Todo esse projeto de nação é fruto de um longo processo de estudos e a firmeza (alguns diriam “dogmatismo”) com que postava suas opiniões; os principais problemas de que tratava eram sempre do mesmo núcleo estratégico, o acabou fazendo com que o historiador se localizasse ora à esquerda, ora à direita do discurso pecebista, uma vez que este partido alterou sua tática política significativas vezes ao longo de sua história. Enquanto podemos visualizar um zigue-zague político do PCB, podemos traçar uma linha reta em relação às posições de Caio Prado.

Ao lermos as obras econômicas de Caio Prado, percebemos o quão influente era a dinâmica capitalista para ele, ou seja, ele realmente acreditava que o capitalismo, em pleno século XX, depois de ter causado duas guerras mundiais, uma enorme Depressão no final dos 20 e começo dos 30, e mais, de ter tido resposta consciente através da Revolução Russa, que as relações de produção capitalista ainda têm papel progressivo a cumprir, e que é possível “administrá-lo” dentro de fronteiras nacionais. Basta somente que consigamos direcionar seu desenvolvimento de acordo com nossos interesses, como inclusive ilustra todo o projeto da Revista Brasiliense, ao longo dos anos 1950.

Caio Prado também é reivindicado como grande defensor da democracia, uma vez que lutou, ainda que à sua maneira, contra a ditadura de Vargas. Quero somente lembrar que a vitória de Vargas foi causa de grande celebração por parte do historiador, que começou sua trajetória política dentro das fileiras do Partido Democrático – expressão do descontentamento com o regime da República Velha. A defesa da democracia como regime ideal era, para o historiador, fruto da compreensão de que somente a democracia seria capaz de oferecer ao conjunto da população a possibilidade de lutar em defesa de melhores condições de vida, pressionar o Estado em direção a políticas mais autônomas, à realização das reformas necessárias para aperfeiçoar a democracia, desenvolver a indústria e estimular o mercado interno; assim estaríamos diante da possibilidade concreta de superar o “sentido da colonização”. Essa é uma visão, que nada tem a ver com o marxismo.

Sua compreensão do que significa um processo revolucionário não vai além de uma soma formal de pequenas reformas dentro dos limites do Estado burguês; a Caio Prado não lhe interessa a derrubada violenta da burguesia e a tomada do poder por parte da classe operária e do povo. O socialismo e o próprio marxismo para o historiador não são mais do que ferramentas que manuseia sem o menor escrúpulo, caso contrário, não teria sido capaz de afirmar categoricamente que o “socialismo não passa de um programa: uma sociedade sem classes é impossível”. A própria Revolução Cubana é ilustrativa, uma vez que lhe impactou fortemente, assim como a toda esquerda. Chega a elogiar fortemente Fidel Castro por sua política que, antes de mais nada, era determinada por objetivos simples, como a derrubada de Somoza, e que foi, através de sua própria ação, avançando em direção à Revolução, como isso não fosse resultado de um processo extremamente contraditório, motorizado pelas pressões das massas cubanas.

RCC: Qual o papel do campesinato na teoria da revolução de Caio Prado Jr.?

DAA: O historiador paulista dá à questão da terra enorme importância. A solução do impasse agrário deveria contar com modificações no campo que visassem o “atendimento de problemas reais da população”. O essencial do problema reside no fato de que a estrutura agrária brasileira, a qual Caio Prado soube bem identificar a relação com grandes latifundiários e o papel que cumpriram para que o Brasil servisse como “fonte de matéria-prima” durante toda sua concatenação enquanto nação e inclusive na República não comporta grande interesse, ou seja, não carece de nenhuma modificação essencial, enfim, estrutural, que permita que o campesinato possa usufruir da terra como lhe parecer melhor. Ao contrário, uma das principais críticas de Caio Prado à importação da teoria revolucionária ao Brasil foi o transplante do termo “campesinato”. Para Caio Prado, se não houve feudalismo, é impossível que haja camponeses e, portanto, o que prima no campo são típicas relações capitalistas, ou seja, como se houvesse somente indústrias enraizadas no campo e ninguém interessado em trabalhar em um pedaço de terra em seu proveito. Essa é, como dissemos, uma importante diferença entre o PCB e Caio Prado, já que o historiador critica a falta de estudo da realidade nacional por parte de seus dirigentes, substituindo-o por simples cópia de programas que nada têm a ver com nossa realidade. Lembremos, porém, que a política agrária do PCB, ao estar subordinada à estratégia de conciliação de classes com uma suposta “burguesia nacional”, estava também ligada aos grandes latifúndios, e assim constituía uma completa traição ao campesinato que reivindicava terra para si. Sendo assim, a chave da questão, para Caio Prado, é convencer os trabalhadores do campo a reivindicar melhores salários e condições de vida, a fim de desenvolver o mercado interno, passo fundamental para a superação do “sentido da colonização”. Não temos como desenvolver neste espaço essa questão da maneira que merece, porém é importante afirmar que tal compreensão teórica lhe levava a não somente não reconhecer a legítima reivindicação histórica por terras de um setor enorme da população – lembremos que até meados dos anos 50, o Brasil ainda era mais agrário do que urbano, como negar a importância e a extensão dessa reivindicação nos turbulentos anos de 50/60. Ao lermos os artigos da revista brasiliense salta à vista a impaciência com que Caio Prado observava a movimentação dos camponeses, temendo por sua radicalização (lembremos de Tromba Formoso, como por exemplo!). Uma compreensão marxista da dinâmica revolucionária no Brasil lhe permitiria concluir que a luta pelo direito ao usufruto da terra por milhões de camponeses era uma luta não contra os latifundiários somente, porém contra a os grandes capitalistas que também lucram com a capitalização da terra, e nesse marco uma luta contra a servil burguesia nacional. Uma luta desse porte somente poderia ser travada com dignidade histórica através da mais sólida aliança com a classe operária, e com sua vanguarda organizada em partido revolucionário. Caio Prado, ao contrário, se liga ideológica e politicamente com a burguesia nacional, (se preferirem com um setor mais ilustrado, mas nem por isso menos burguês), e clamando por calma e comedimento nos enfrentamentos, pela necessária ação “positiva” do Estado no sentido de acalmar os ânimos, pois maiores turbulências somente serviriam à direita.

RCC: Em que medida Caio Prado Jr. chega a encarnar a tão propalada “nacionalização do marxismo”, com que certos estudiosos se referem a ele?

DAA: Acredito que esse debate se presta a muita confusão. A idéia de uma “nacionalização do marxismo” é, em certa medida, tributária da própria visão de Caio Prado em relação à “importação do marxismo” como problema central à elaboração programática dos revolucionários. Como dissemos anteriormente, Caio Prado se colocava contra a tese de revolução democrático-burguesa do PCB, e encarava a debilidade teórica de seu partido como fruto da importação dessa teoria. Nesse marco, é ao localizar-se como crítico à nulidade teórica do PCB e oferecer uma visão alternativa, ainda que dentro do campo do nacional-reformismo, que o historiador consegue destaque e é qualificado como alguém capaz de ligar o marxismo à realidade nacional. Em última instância, Caio Prado muniu-se do essencial da teoria burocrática da III Internacional sob o comando de Stalin, e deu-lhe contornos da realidade nacional. Localiza-se em Caio Prado uma superação, ainda que parcial, da “teoria” da III IC, e é esse o conteúdo que os acadêmicos conferem à expressão “nacionalização do marxismo”, quando se referem a Caio Prado.

Antes de afirmar se Caio Prado nacionalizou o marxismo ou não, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: a quem servem as idéias que ele defende? Servem de amálgama teórico para a esquerda, que se contenta em ser esquerda reformista, revestir-se de certo conteúdo marxista e defender os interesses históricos da burguesia, e não da classe operária, os da revolução socialista, os do comunismo.

Quando nos referimos ao marxismo, nos referimos a uma ferramenta teórica fruto da generalização das experiências da classe operária e do povo oprimido, durante um período, conturbado e repleto de contradições, de mais de 200 anos de luta de classes sob o capitalismo. A tarefa dos intelectuais revolucionários não é a de nacionalizar o marxismo, mas à luz dos aportes de grandes dirigentes revolucionários, como Lênin e Trostky, e da análise dos principais fenômenos da luta de classes, ser capaz de analisar o desenvolvimento da realidade e aportar teórica, estratégica e politicamente, em defesa dos interesses da revolução socialista. Qualquer debate acerca da nacionalização do marxismo, ou seja, de crítica à teoria do PCB e a influência stalinista por fora dessa visão mais geral, serve nada mais que para embelezar o legado de Caio Prado.

Quero aproveitar a oportunidade para dizer que a revista Iskra, no marco da amplíssima questão de contribuir para a recriação revolucionária do marxismo, enxerga como uma tarefa fundamental a crítica marxista aos principais expoentes de visões que afastam a teoria marxista da classe operária, ou o que é o mesmo, que afastam esta das suas tarefas revolucionárias, como as distintas defesas da idéia dos “países não-maduros” para a revolução socialista etc. Por isso nos dedicamos em nosso primeiro número a criticar não só Caio Prado Jr., como também Lukács, que é outra referência quase inconteste em setores da esquerda brasileira.


* Daniel Angyalossy Alfonso é editor da Revista Iskra, autor do artigo Caio Prado Júnior e a Gênese do Marximos Reformista no Brasil e militante da LER-QI

sexta-feira, 3 de abril de 2009

REVISTA ISKRA : Uma revista de idéias e cultura para os novos tempos

Imagem de El Lissitzky


Por Gilson Dantas
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Nas décadas mais recentes, de ofensiva do grande capital conta os salários e as conquistas dos trabalhadores, nenhuma rebelião popular e operária chegou a tomar a forma de revolução. O impacto desse refluxo revolucionário na esfera intelectual, da cultura e do pensamento crítico, traduziu-se em uma verdadeira regressão, com o marxismo vivendo uma duríssima estiagem.
A ofensiva ficou por conta do pensamento “único” neoliberal em todas as suas facetas reacionárias, toscas e anti-revolucionárias e, segundo seu discurso, o marxismo se tornara pouco mais que uma “relíquia pré-histórica”, uma teoria vencida pelo tempo, pela história, entretenimento de militantes políticos e/ou acadêmicos viciados em sessão-nostalgia, em recordações de Lenin, Trotski e do velho e simpático Karl Marx. A reação neoliberal, rápida e sistematicamente, tratou de emplacar no granito velhos clichês como o do fim do sonho socialista e, em especial teses como a de amalgamar Stalin com Lenin, Trotski com o sectarismo incurável e, quanto a Marx foi deixado num canto empoeirado, como objeto de pesquisas.

O pensamento da classe dominante (fim do comunismo, triunfo do liberalismo e do mais cru individualismo) penetrou, viscoso, por todos os poros da sociedade ao mesmo tempo em que os seus aparelhos ideológicos – escola, igreja, mídia etodas as instituições da ordem – destilavam asneiras pós-modernas, pós-industriais e liberais com status de respeitabilidade acadêmica, ao mesmo tempo em que a revolução socialista, o proletariado e o partido revolucionário, quando mencionados, eram com deboche ou delírio. Em suma: o marxismo estava na berlinda, no estio, tinha que tornar-se uma miragem.

No entanto, o pior de tudo, para o pensamento inconformado e inquieto da juventude e de todo aquele que teimou em manter acesa a chama, foi o seguinte: o marxismo, obviamente continuou existindo e resistindo – no mundo do capital não há como cravar a estaca no peito do marxismo – só que o marxismo desses tempos e propagado no nosso país (inclusive o que vinha de antes) contribuía para agravar esse estado de coisas.

Vigorava um marxismo com tais características que, mesmo quando brilhava, mesmo quando se empenhava em aprofundar aspectos e avançar intelectualmente, terminava por estabelecer acordos, pactos e amálgamas que, como regra, limitavam ou castravam sua possibilidade de instaurar uma tradição efetivamente revolucionário-marxista, de ruptura estratégica e programática com o pensamento burguês-reformista e com o ultra-esquerdismo. Isso a despeito da coragem e abnegação de seus autores ou até de suas intenções.

Em partidos, universidades, no movimento sindical, na intelectualidade combativa, a regra foi esta: o marxismo estabelecido vinha amalgamado com o possibilismo (só se luta pelo que “é possível” conquistar), pelo excessivo respeito e até subserviência a tudo que parecesse marxista, aos ícones estabelecidos na academia, em suma, prevalecia a veneração à fraseologia marxista mesmo que ela viesse – e esta era a regra – desacompanhada de preocupações práticas (estratégicas, programáticas), mesmo que ela não rompesse com o horizonte burguês-democrático e passasse ao largo da preocupação com o proletariado para além do horizonte “pestista” (incapaz de primar pela organização independente da classe trabalhadora).

Este foi o caso, para citar apenas um exemplo, do marxismo luckacsiano em nossa terra, onde ganhou grande visibilidade na esquerda (ao contrário de países como a Argentina onde o peso de Luckács é inexpressivo). E foi também o caso de verdadeiros ícones e tradições intocáveis do marxismo brasileiro, como Caio Prado Júnior, na verdade o fundador de uma das variantes do nacional-reformismo marxista.

Em uma frase: a ofensiva da miséria da teoria liberal é pós-tudo somou-se, de alguma forma, com a reprodução ampliada de um marxismo “nativo” com forte tendência à conformação e adaptação ao entorno reformista, conciliador. Neste ambiente intelectual prevalecia um certo pacto de não-agressão mútua no qual, por exemplo, a crítica principista frontal – honesta, argumentada, referenciada – não era bem vista. O ecletismo, o amálgama de determinadas idéias, que na prática revolucionária se revelam antagônicas, o respeito à tradição (leia-se, muitas vezes: visibilidade acadêmica) se impunha como o fenômeno intelectual mais natural do mundo.

A grande conseqüência negativa desse processo veio sendo o seu impacto na formação marxista das novas gerações de revolucionários, quadabsolutamente necessários nos combates que se anunciam nesta grande crise do capitalismo que se constrói aos olhos de todos nós. Não tivemos revistas de combate político, revistas de partido, não se desmistificou abertamente o “marxismo” de colaboração de classes, não se combateu com todas as armas da crítica (e da prática) ao modo petista de militar e de pensar (de pensar as lutas sociais e o papel de sujeito do proletariado). Perdemos em formação marxista revolucionária, por mais que o marxismo tenha ocupado espaço acadêmico, espaço literário e presença nos movimentos sociais sindicais nessa época de vacas magras, e por mais que seja um fato inegável a existência e o ativismo de autores marxistas importantes e úteis em vários cantos do Brasil.

A revista ISKRA surge com a mais apaixonada intenção de contribuir para mudar esse quadro. De somar, na luta contra um relógio que passará a correr mais rápido nesses novos tempos históricos, no sentido de construção de um marxismo irredutivelmente vinculado às lutas operárias, à estratégia soviética e anti-capitalista. E ISKRA pretende postar-se, pelo que se desprende da leitura do seu número 1, na esfera intelectual, em aberto e sincero combate contra a tradição marxista que mesmo quando critica à burguesia e ao stalinismo, deixa a porta aberta à conciliação com a burguesia e com o stalinismo (através do ecletismo, da crítica das aparências ou até do reiterado escorregão teórico de confundir bolchevismo com stalinismo, Lenin com Stalin, socialismo com ausência de democracia soviética, ou de regularmente renunciar à estratégia em nome da “tática” e assim por diante).

Em seu primeiro número é evidente o esforço da revista ISKRA – e a meu ver bem sucedido – em romper com essa tradição, a mesma que em nome de Marx e da luta pelo socialismo, termina – inadvertidamente ou não –, por desarmar a luta do marxismo revolucionário em determinado sentido. Ou seja, desarmá-la contra todo pensamento que dificulte à classe trabalhadora, enxergar - através da neblina do palavreado intelectualizado -, quem é seu aliado e quem não é, quem é apenas companheiro de viagem e quem pode ir até o fim na luta, com quem e com o quê pode haver acordo político, onde está o debate estratégico e qual a coerência da tática cm ele, com o programa.

Um breve olhar sobre a recente tradição acadêmica de esquerda irá perceber o quanto essa confusão é reinante: autores com o Lukács (e seu discípulo Mészàros), Caio Prado Júnior, Chico de Oliveira, Rui Mauro Marini, Mandel, Zizek e outros são inalcançáveis pela crítica aberta e desmistificadora – mesmo que se leve em conta o legítimo respeito que cada um deles mereça – ao mesmo tempo em que impera, na outra ponta, o “diálogo” sistemático e permanente com autores como Celso Furtado, Habermas Max Weber e outras celebridades do pensamento acadêmico-burguês, sem situá-los no seu papel e seu lugar de classe ou seu papel na luta revolucionária ou contra-revolucionária (caso de Weber). Nem é preciso mencionar autores da moda – que entram e saem da moda, como Negri ou Mészàros – mas cuja crítica a seu pensamento costuma limitar-se a aspectos menores. Em suma, esta tradição do marxismo no Brasil – que na verdade vem de longa data – deixou de construir uma crítica que ponha de pé, como primeiro critério, a necessidade de ir construindo politicamente, teoricamente, estrategicamente e intelectualmente, a independência política do proletariado, as idéias da revolução proletária, socialista. Nada disso se fará sem a polêmica fraterna porém comprometida com a defesa irredutível de princípios.

O número 1 da revista ISKRA é um exemplo neste sentido. Pelo limite de espaço tomo o exemplo de apenas um de seus artigos de fôlego. A revista traz cinco textos: o primeiro sobre a crise do atual movimento estudantil e a aliança estudantes-trabalhadores; uma crítica ao pensamento de Caio Prado Júnior e o marxismo reformista; um comentário ao uso ideológico, nas faculdades de ciência política, da revolução norte-americana; um texto sobre o surrealista Benjamin Péret que esteve no Brasil antes da II Guerra e, finalmente, o artigo sobre Lukács e o stalinismo que passo a comentar.

Este texto reflete bem (assim como o texto sobre Caio Prado Júnior e demais) o novo patamar de debate marxista ao qual a revista quer contribuir para construir. Tomando um marxista de grande influência intelectual sobre gerações que se formaram durante e depois da Guerra Fria e, sem deixar de reconhecer seus méritos, por exemplo, em estudos exegéticos de Marx, Edison Salles (ISKRA) vai desvelando um a um – de forma muito bem fundamentada – os limites do pensamento lukacsiano. Não se trata de um balanço do positivo e do negativo de Lukács, o que não faria qualquer sentido.

O que fica evidente, no trabalho de pesquisa e de ourives de Salles, é que o fio condutor presente por trás do mito luckacsiano é o de um pensamento que, política e estrategicamente não se põe dentro da perspectiva revolucionária do proletariado. Inteligente, incansável, refinado em suas análises literárias, sincero defensor do realismo clássico na literatura, profundo conhecedor de idéias de Marx e Engels, grande professor de filosofia (em obras como O assalto à razão), crítico a Stalin no fim de sua vida e tido como um autor marxista não-dogmático, no entanto, o eixo teórico-político do nosso pensador, Lukács, é o de adesão (e jamais oposição de esquerda) ao pensamento burocrático dentro movimento comunista internacional (leia-se aqui: stalinista).

Lukács esforçou-se permanentemente em legitimar, amparar e justificar teoricamente o pensamento contra-revolucionário de Stalin, confundi-lo com Lenin e, no fim da vida – crítico a Stalin – aderiu ao neo-stalinista Togliatti e aos grandes PCs eurocomunistas (praticantes da colaboração e traição de classe frente à sua classe operária). Jamais foi conseqüente na crítica a Stalin e defendia a reforma da burocracia, e, em momento algum, a revolução política para repor os conselhos operários no comando da URSS. Inimigo visceral de Trotski até a morte, foi sempre amigo e respeituoso em sua relação com autores da estirpe de Max Weber e os quadros stalinistas cúmplices dos processos de Moscou da década de 1930.

O artigo de Salles, além de escrito de forma elegante, reflete (assim como os demais, da revista de autoria de Daniel Angyalossy, Ricardo Festi e Marcelo Torres, Ciro Tappeste, Leandro Ventura) o sentido e a novidade da revista ISKRA para o marxismo revolucionário brasileiro. Em seus vários textos, argumentadamente, a revista ISKRA procura mostrar, na prática, que a tradição marxista revolucionária só poderá ser construída através da desconstrução do velho edifício do marxismo reformista, do marxismo que não faz a crítica essencial ao stalinismo (como “teoria” do socialismo num só país, da conciliação de classe, do socialismo sem sovietes etc), ao marxismo autonomista, ao marxismo sem partido e sem proletariado e assim por diante.

Com toda certeza ISKRA concretiza um tempo de revistas de partido, que tomam posição (tomam partido) polemicamente em torno dos temas mais candentes para a construção política, teórica, estratégia, cultural de uma nova geração que pretenda, sem ser sectária, alinhar-se intransigentemente nos princípios, assumir-se como irredutível naquilo que o marxismo tem de irredutível, somando na construção de ferramenta crítica que, ao ser utilizada na prática, em vez de oxidada ou travada, esteja desembaraçada para seu uso pelos trabalhadores e seus representantes intelectuais e políticos.


*Gilson Dantas é médico e doutor em sociologia pela Universidade de Brasília.

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