Revista Contra a Corrente: Habitualmente é costume – mesmo na literatura acadêmica de esquerda - diferenciar Caio Prado Jr. do Partido Comunista Brasileiro; você poderia falar, de acordo com seus estudos em relação ao tema, a respeito das semelhanças ou convergências entre Caio Prado Jr e o Partido Comunista Brasileiro? Você fala em “grande acordo estratégico com o PCB” referindo-se a Caio Prado Jr., poderia explicitar este ponto?
Daniel Angyalossy Alfonso: Caio Prado é reconhecido como o “primeiro” grande crítico da estratégia de Revolução democrático-burguesa defendida pelo Partido Comunista Brasileiro, que não fazia mais do que seguir as ordens da III Internacional sob o comando de Stalin. Como se sabe, a estratégia do PCB se baseava na premissa etapista do desenvolvimento das forças produtivas e concluía que no Brasil as relações de produção não eram capitalistas, mas sim feudais. A conclusão da burocracia soviética, que estava de acordo com seus interesses, era a de que a classe operária não poderia ter uma política de independência de classe, que estivesse no marco da luta revolucionária pelo socialismo. Longe disso, a Revolução democrático-burguesa defendida pelo PCB tinha como objetivo essencial limpar os restos feudais e destravar o país para o desenvolvimento capitalista; tendo pela frente a burguesia nacional, que segundo o PCB tinha interesses materiais qualitativamente distintos dos da burguesia imperialista. Já Caio Prado partia de outra premissa. Para ele, o Brasil sempre esteve atrelado ao desenvolvimento capitalista – o que é, em linhas gerais, correto –, portanto não havia nenhum resto feudal a ser destruído, tratava-se de desenvolver o capitalismo nacional. Essa diferença sempre foi considerada como uma diferença estratégica que separava o historiador de seu partido (muito se escreveu sobre a contraditória relação entre o intelectual e os dirigentes do PCB em suas distintas fases), sendo que uma parte importante dos comentaristas chega a considerar a “disciplina” partidária de Caio Prado como a principal razão para a sua permanência nas fileiras do partido. Ora, não queremos menosprezar sua suposta “disciplina militante”, mas simplesmente não podemos nos contentar com uma resposta desse tipo. O que é muito mais relevante, a chave para a compreensão da proximidade programática entre Caio Prado e o PCB é, antes de tudo, a visão comum que ambos tinham, se não em relação ao passado do Brasil, mas a seu futuro. Tanto o PCB como Caio Prado, apoiando-se na teoria do “socialismo em um só país”, ou seja, na orientação estratégica da burocracia soviética, compartilhavam a ilusão de que o Brasil estaria em uma suposta lista de “países não-maduros” para o socialismo, ou seja, tratava-se justamente de colocar a burguesia nacional à frente da direção nacional para desenvolver o capitalismo e somente depois de toda uma etapa de desenvolvimento das forças produtivas, lutar pelo socialismo. A negativa frente à necessidade de a classe operária tomar o poder, em aliança estratégica com os camponeses e o povo pobre para resolver seus problemas mais essenciais era um acordo capaz de fazer frente à todas as diferenças entre o historiador e seu partido. É esse, em linhas gerais, o “grande acordo estratégico com o PCB e Caio Prado”.
Isso, porém, não pode ofuscar as importantes diferenças entre os dois, como por exemplo, a questão camponesa e a própria visão da revolução. Por exemplo, por incrível que pareça, Caio Prado tinha uma visão muito mais pacífica e linear de “revolução” do que o próprio PCB, mesmo com sua estratégia de conciliação de classes.
Qual o projeto ou programa político de Caio Prado Jr.?
Em poucas palavras, podemos dizer que seu programa político, ou melhor, seu projeto de nação, consiste na superação do “sentido da colonização”, ou seja, na superação de um desenvolvimento interno que esteve sempre pautado pelo papel que o Brasil cumpria de fornecedor de matérias-prima, o que significa relegar os interesses “reais da nação”, ou “os interesses da maioria da população”. A superação do “sentido”, segundo Caio Prado, consiste em todo um projeto de emancipação política e econômica; sendo inclusive que o primeiro passo, ou seja, a emancipação política, realizou-se com a vinda da corte portuguesa fugida da invasão napoleônica em 1808. Dentro dos limites da mais rasa teoria burguesa, que separa mecanicamente o político do econômico, para Caio Prado tratava-se de aprofundar a ruptura com o “sentido” através de uma série de reformas por dentro do regime político burguês, buscando a atuação do Estado no interesse da maioria da população (como se isso fosse possível...), ou seja, através de um Estado atuante. Cabe ao Estado, ao seu entender, tomar as medidas necessárias para dinamizar a economia nacional, priorizando o desenvolvimento do mercado interno (nesse marco a reivindicação de melhores salários e condições de vida é essencial), e os “interesses da nação”. Aqui é importante que não nos esqueçamos da importante influência que os trotskistas da Liga Comunista Internacionalista tiveram sobre a obra do historiador, e principalmente na formulação geral do significado do “sentido da colonização”. O papel que o Brasil cumpria, e de uma forma mais complexa e contraditória, ainda cumpre na divisão internacional do trabalho, foi analisado em linhas gerais cerca de 10 anos antes das primeiras linhas de Caio Prado – Lívio Xavier, dirigente da LCI e o historiador tiveram, até certo ponto, uma relação intelectual amistosa. Como disse, Caio Prado é contrário à estratégia etapista para o Brasil, porém somente para afirmar que o desenvolvimento econômico brasileiro sempre foi puramente capitalista e voltado para interesses alheios, sendo que o que se tratava, era de, digamos, “enraizar” o capitalismo e assim colocá-lo a serviço dos interesses nacionais. Todo esse projeto de nação é fruto de um longo processo de estudos e a firmeza (alguns diriam “dogmatismo”) com que postava suas opiniões; os principais problemas de que tratava eram sempre do mesmo núcleo estratégico, o acabou fazendo com que o historiador se localizasse ora à esquerda, ora à direita do discurso pecebista, uma vez que este partido alterou sua tática política significativas vezes ao longo de sua história. Enquanto podemos visualizar um zigue-zague político do PCB, podemos traçar uma linha reta em relação às posições de Caio Prado.
Ao lermos as obras econômicas de Caio Prado, percebemos o quão influente era a dinâmica capitalista para ele, ou seja, ele realmente acreditava que o capitalismo, em pleno século XX, depois de ter causado duas guerras mundiais, uma enorme Depressão no final dos 20 e começo dos 30, e mais, de ter tido resposta consciente através da Revolução Russa, que as relações de produção capitalista ainda têm papel progressivo a cumprir, e que é possível “administrá-lo” dentro de fronteiras nacionais. Basta somente que consigamos direcionar seu desenvolvimento de acordo com nossos interesses, como inclusive ilustra todo o projeto da Revista Brasiliense, ao longo dos anos 1950.
Caio Prado também é reivindicado como grande defensor da democracia, uma vez que lutou, ainda que à sua maneira, contra a ditadura de Vargas. Quero somente lembrar que a vitória de Vargas foi causa de grande celebração por parte do historiador, que começou sua trajetória política dentro das fileiras do Partido Democrático – expressão do descontentamento com o regime da República Velha. A defesa da democracia como regime ideal era, para o historiador, fruto da compreensão de que somente a democracia seria capaz de oferecer ao conjunto da população a possibilidade de lutar em defesa de melhores condições de vida, pressionar o Estado em direção a políticas mais autônomas, à realização das reformas necessárias para aperfeiçoar a democracia, desenvolver a indústria e estimular o mercado interno; assim estaríamos diante da possibilidade concreta de superar o “sentido da colonização”. Essa é uma visão, que nada tem a ver com o marxismo.
Sua compreensão do que significa um processo revolucionário não vai além de uma soma formal de pequenas reformas dentro dos limites do Estado burguês; a Caio Prado não lhe interessa a derrubada violenta da burguesia e a tomada do poder por parte da classe operária e do povo. O socialismo e o próprio marxismo para o historiador não são mais do que ferramentas que manuseia sem o menor escrúpulo, caso contrário, não teria sido capaz de afirmar categoricamente que o “socialismo não passa de um programa: uma sociedade sem classes é impossível”. A própria Revolução Cubana é ilustrativa, uma vez que lhe impactou fortemente, assim como a toda esquerda. Chega a elogiar fortemente Fidel Castro por sua política que, antes de mais nada, era determinada por objetivos simples, como a derrubada de Somoza, e que foi, através de sua própria ação, avançando em direção à Revolução, como isso não fosse resultado de um processo extremamente contraditório, motorizado pelas pressões das massas cubanas.
RCC: Qual o papel do campesinato na teoria da revolução de Caio Prado Jr.?
DAA: O historiador paulista dá à questão da terra enorme importância. A solução do impasse agrário deveria contar com modificações no campo que visassem o “atendimento de problemas reais da população”. O essencial do problema reside no fato de que a estrutura agrária brasileira, a qual Caio Prado soube bem identificar a relação com grandes latifundiários e o papel que cumpriram para que o Brasil servisse como “fonte de matéria-prima” durante toda sua concatenação enquanto nação e inclusive na República não comporta grande interesse, ou seja, não carece de nenhuma modificação essencial, enfim, estrutural, que permita que o campesinato possa usufruir da terra como lhe parecer melhor. Ao contrário, uma das principais críticas de Caio Prado à importação da teoria revolucionária ao Brasil foi o transplante do termo “campesinato”. Para Caio Prado, se não houve feudalismo, é impossível que haja camponeses e, portanto, o que prima no campo são típicas relações capitalistas, ou seja, como se houvesse somente indústrias enraizadas no campo e ninguém interessado em trabalhar em um pedaço de terra em seu proveito. Essa é, como dissemos, uma importante diferença entre o PCB e Caio Prado, já que o historiador critica a falta de estudo da realidade nacional por parte de seus dirigentes, substituindo-o por simples cópia de programas que nada têm a ver com nossa realidade. Lembremos, porém, que a política agrária do PCB, ao estar subordinada à estratégia de conciliação de classes com uma suposta “burguesia nacional”, estava também ligada aos grandes latifúndios, e assim constituía uma completa traição ao campesinato que reivindicava terra para si. Sendo assim, a chave da questão, para Caio Prado, é convencer os trabalhadores do campo a reivindicar melhores salários e condições de vida, a fim de desenvolver o mercado interno, passo fundamental para a superação do “sentido da colonização”. Não temos como desenvolver neste espaço essa questão da maneira que merece, porém é importante afirmar que tal compreensão teórica lhe levava a não somente não reconhecer a legítima reivindicação histórica por terras de um setor enorme da população – lembremos que até meados dos anos 50, o Brasil ainda era mais agrário do que urbano, como negar a importância e a extensão dessa reivindicação nos turbulentos anos de 50/60. Ao lermos os artigos da revista brasiliense salta à vista a impaciência com que Caio Prado observava a movimentação dos camponeses, temendo por sua radicalização (lembremos de Tromba Formoso, como por exemplo!). Uma compreensão marxista da dinâmica revolucionária no Brasil lhe permitiria concluir que a luta pelo direito ao usufruto da terra por milhões de camponeses era uma luta não contra os latifundiários somente, porém contra a os grandes capitalistas que também lucram com a capitalização da terra, e nesse marco uma luta contra a servil burguesia nacional. Uma luta desse porte somente poderia ser travada com dignidade histórica através da mais sólida aliança com a classe operária, e com sua vanguarda organizada em partido revolucionário. Caio Prado, ao contrário, se liga ideológica e politicamente com a burguesia nacional, (se preferirem com um setor mais ilustrado, mas nem por isso menos burguês), e clamando por calma e comedimento nos enfrentamentos, pela necessária ação “positiva” do Estado no sentido de acalmar os ânimos, pois maiores turbulências somente serviriam à direita.
RCC: Em que medida Caio Prado Jr. chega a encarnar a tão propalada “nacionalização do marxismo”, com que certos estudiosos se referem a ele?
DAA: Acredito que esse debate se presta a muita confusão. A idéia de uma “nacionalização do marxismo” é, em certa medida, tributária da própria visão de Caio Prado em relação à “importação do marxismo” como problema central à elaboração programática dos revolucionários. Como dissemos anteriormente, Caio Prado se colocava contra a tese de revolução democrático-burguesa do PCB, e encarava a debilidade teórica de seu partido como fruto da importação dessa teoria. Nesse marco, é ao localizar-se como crítico à nulidade teórica do PCB e oferecer uma visão alternativa, ainda que dentro do campo do nacional-reformismo, que o historiador consegue destaque e é qualificado como alguém capaz de ligar o marxismo à realidade nacional. Em última instância, Caio Prado muniu-se do essencial da teoria burocrática da III Internacional sob o comando de Stalin, e deu-lhe contornos da realidade nacional. Localiza-se em Caio Prado uma superação, ainda que parcial, da “teoria” da III IC, e é esse o conteúdo que os acadêmicos conferem à expressão “nacionalização do marxismo”, quando se referem a Caio Prado.
Antes de afirmar se Caio Prado nacionalizou o marxismo ou não, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: a quem servem as idéias que ele defende? Servem de amálgama teórico para a esquerda, que se contenta em ser esquerda reformista, revestir-se de certo conteúdo marxista e defender os interesses históricos da burguesia, e não da classe operária, os da revolução socialista, os do comunismo.
Quando nos referimos ao marxismo, nos referimos a uma ferramenta teórica fruto da generalização das experiências da classe operária e do povo oprimido, durante um período, conturbado e repleto de contradições, de mais de 200 anos de luta de classes sob o capitalismo. A tarefa dos intelectuais revolucionários não é a de nacionalizar o marxismo, mas à luz dos aportes de grandes dirigentes revolucionários, como Lênin e Trostky, e da análise dos principais fenômenos da luta de classes, ser capaz de analisar o desenvolvimento da realidade e aportar teórica, estratégica e politicamente, em defesa dos interesses da revolução socialista. Qualquer debate acerca da nacionalização do marxismo, ou seja, de crítica à teoria do PCB e a influência stalinista por fora dessa visão mais geral, serve nada mais que para embelezar o legado de Caio Prado.
Quero aproveitar a oportunidade para dizer que a revista Iskra, no marco da amplíssima questão de contribuir para a recriação revolucionária do marxismo, enxerga como uma tarefa fundamental a crítica marxista aos principais expoentes de visões que afastam a teoria marxista da classe operária, ou o que é o mesmo, que afastam esta das suas tarefas revolucionárias, como as distintas defesas da idéia dos “países não-maduros” para a revolução socialista etc. Por isso nos dedicamos em nosso primeiro número a criticar não só Caio Prado Jr., como também Lukács, que é outra referência quase inconteste em setores da esquerda brasileira.
* Daniel Angyalossy Alfonso é editor da Revista Iskra, autor do artigo Caio Prado Júnior e a Gênese do Marximos Reformista no Brasil e militante da LER-QI
Isso, porém, não pode ofuscar as importantes diferenças entre os dois, como por exemplo, a questão camponesa e a própria visão da revolução. Por exemplo, por incrível que pareça, Caio Prado tinha uma visão muito mais pacífica e linear de “revolução” do que o próprio PCB, mesmo com sua estratégia de conciliação de classes.
Qual o projeto ou programa político de Caio Prado Jr.?
Em poucas palavras, podemos dizer que seu programa político, ou melhor, seu projeto de nação, consiste na superação do “sentido da colonização”, ou seja, na superação de um desenvolvimento interno que esteve sempre pautado pelo papel que o Brasil cumpria de fornecedor de matérias-prima, o que significa relegar os interesses “reais da nação”, ou “os interesses da maioria da população”. A superação do “sentido”, segundo Caio Prado, consiste em todo um projeto de emancipação política e econômica; sendo inclusive que o primeiro passo, ou seja, a emancipação política, realizou-se com a vinda da corte portuguesa fugida da invasão napoleônica em 1808. Dentro dos limites da mais rasa teoria burguesa, que separa mecanicamente o político do econômico, para Caio Prado tratava-se de aprofundar a ruptura com o “sentido” através de uma série de reformas por dentro do regime político burguês, buscando a atuação do Estado no interesse da maioria da população (como se isso fosse possível...), ou seja, através de um Estado atuante. Cabe ao Estado, ao seu entender, tomar as medidas necessárias para dinamizar a economia nacional, priorizando o desenvolvimento do mercado interno (nesse marco a reivindicação de melhores salários e condições de vida é essencial), e os “interesses da nação”. Aqui é importante que não nos esqueçamos da importante influência que os trotskistas da Liga Comunista Internacionalista tiveram sobre a obra do historiador, e principalmente na formulação geral do significado do “sentido da colonização”. O papel que o Brasil cumpria, e de uma forma mais complexa e contraditória, ainda cumpre na divisão internacional do trabalho, foi analisado em linhas gerais cerca de 10 anos antes das primeiras linhas de Caio Prado – Lívio Xavier, dirigente da LCI e o historiador tiveram, até certo ponto, uma relação intelectual amistosa. Como disse, Caio Prado é contrário à estratégia etapista para o Brasil, porém somente para afirmar que o desenvolvimento econômico brasileiro sempre foi puramente capitalista e voltado para interesses alheios, sendo que o que se tratava, era de, digamos, “enraizar” o capitalismo e assim colocá-lo a serviço dos interesses nacionais. Todo esse projeto de nação é fruto de um longo processo de estudos e a firmeza (alguns diriam “dogmatismo”) com que postava suas opiniões; os principais problemas de que tratava eram sempre do mesmo núcleo estratégico, o acabou fazendo com que o historiador se localizasse ora à esquerda, ora à direita do discurso pecebista, uma vez que este partido alterou sua tática política significativas vezes ao longo de sua história. Enquanto podemos visualizar um zigue-zague político do PCB, podemos traçar uma linha reta em relação às posições de Caio Prado.
Ao lermos as obras econômicas de Caio Prado, percebemos o quão influente era a dinâmica capitalista para ele, ou seja, ele realmente acreditava que o capitalismo, em pleno século XX, depois de ter causado duas guerras mundiais, uma enorme Depressão no final dos 20 e começo dos 30, e mais, de ter tido resposta consciente através da Revolução Russa, que as relações de produção capitalista ainda têm papel progressivo a cumprir, e que é possível “administrá-lo” dentro de fronteiras nacionais. Basta somente que consigamos direcionar seu desenvolvimento de acordo com nossos interesses, como inclusive ilustra todo o projeto da Revista Brasiliense, ao longo dos anos 1950.
Caio Prado também é reivindicado como grande defensor da democracia, uma vez que lutou, ainda que à sua maneira, contra a ditadura de Vargas. Quero somente lembrar que a vitória de Vargas foi causa de grande celebração por parte do historiador, que começou sua trajetória política dentro das fileiras do Partido Democrático – expressão do descontentamento com o regime da República Velha. A defesa da democracia como regime ideal era, para o historiador, fruto da compreensão de que somente a democracia seria capaz de oferecer ao conjunto da população a possibilidade de lutar em defesa de melhores condições de vida, pressionar o Estado em direção a políticas mais autônomas, à realização das reformas necessárias para aperfeiçoar a democracia, desenvolver a indústria e estimular o mercado interno; assim estaríamos diante da possibilidade concreta de superar o “sentido da colonização”. Essa é uma visão, que nada tem a ver com o marxismo.
Sua compreensão do que significa um processo revolucionário não vai além de uma soma formal de pequenas reformas dentro dos limites do Estado burguês; a Caio Prado não lhe interessa a derrubada violenta da burguesia e a tomada do poder por parte da classe operária e do povo. O socialismo e o próprio marxismo para o historiador não são mais do que ferramentas que manuseia sem o menor escrúpulo, caso contrário, não teria sido capaz de afirmar categoricamente que o “socialismo não passa de um programa: uma sociedade sem classes é impossível”. A própria Revolução Cubana é ilustrativa, uma vez que lhe impactou fortemente, assim como a toda esquerda. Chega a elogiar fortemente Fidel Castro por sua política que, antes de mais nada, era determinada por objetivos simples, como a derrubada de Somoza, e que foi, através de sua própria ação, avançando em direção à Revolução, como isso não fosse resultado de um processo extremamente contraditório, motorizado pelas pressões das massas cubanas.
RCC: Qual o papel do campesinato na teoria da revolução de Caio Prado Jr.?
DAA: O historiador paulista dá à questão da terra enorme importância. A solução do impasse agrário deveria contar com modificações no campo que visassem o “atendimento de problemas reais da população”. O essencial do problema reside no fato de que a estrutura agrária brasileira, a qual Caio Prado soube bem identificar a relação com grandes latifundiários e o papel que cumpriram para que o Brasil servisse como “fonte de matéria-prima” durante toda sua concatenação enquanto nação e inclusive na República não comporta grande interesse, ou seja, não carece de nenhuma modificação essencial, enfim, estrutural, que permita que o campesinato possa usufruir da terra como lhe parecer melhor. Ao contrário, uma das principais críticas de Caio Prado à importação da teoria revolucionária ao Brasil foi o transplante do termo “campesinato”. Para Caio Prado, se não houve feudalismo, é impossível que haja camponeses e, portanto, o que prima no campo são típicas relações capitalistas, ou seja, como se houvesse somente indústrias enraizadas no campo e ninguém interessado em trabalhar em um pedaço de terra em seu proveito. Essa é, como dissemos, uma importante diferença entre o PCB e Caio Prado, já que o historiador critica a falta de estudo da realidade nacional por parte de seus dirigentes, substituindo-o por simples cópia de programas que nada têm a ver com nossa realidade. Lembremos, porém, que a política agrária do PCB, ao estar subordinada à estratégia de conciliação de classes com uma suposta “burguesia nacional”, estava também ligada aos grandes latifúndios, e assim constituía uma completa traição ao campesinato que reivindicava terra para si. Sendo assim, a chave da questão, para Caio Prado, é convencer os trabalhadores do campo a reivindicar melhores salários e condições de vida, a fim de desenvolver o mercado interno, passo fundamental para a superação do “sentido da colonização”. Não temos como desenvolver neste espaço essa questão da maneira que merece, porém é importante afirmar que tal compreensão teórica lhe levava a não somente não reconhecer a legítima reivindicação histórica por terras de um setor enorme da população – lembremos que até meados dos anos 50, o Brasil ainda era mais agrário do que urbano, como negar a importância e a extensão dessa reivindicação nos turbulentos anos de 50/60. Ao lermos os artigos da revista brasiliense salta à vista a impaciência com que Caio Prado observava a movimentação dos camponeses, temendo por sua radicalização (lembremos de Tromba Formoso, como por exemplo!). Uma compreensão marxista da dinâmica revolucionária no Brasil lhe permitiria concluir que a luta pelo direito ao usufruto da terra por milhões de camponeses era uma luta não contra os latifundiários somente, porém contra a os grandes capitalistas que também lucram com a capitalização da terra, e nesse marco uma luta contra a servil burguesia nacional. Uma luta desse porte somente poderia ser travada com dignidade histórica através da mais sólida aliança com a classe operária, e com sua vanguarda organizada em partido revolucionário. Caio Prado, ao contrário, se liga ideológica e politicamente com a burguesia nacional, (se preferirem com um setor mais ilustrado, mas nem por isso menos burguês), e clamando por calma e comedimento nos enfrentamentos, pela necessária ação “positiva” do Estado no sentido de acalmar os ânimos, pois maiores turbulências somente serviriam à direita.
RCC: Em que medida Caio Prado Jr. chega a encarnar a tão propalada “nacionalização do marxismo”, com que certos estudiosos se referem a ele?
DAA: Acredito que esse debate se presta a muita confusão. A idéia de uma “nacionalização do marxismo” é, em certa medida, tributária da própria visão de Caio Prado em relação à “importação do marxismo” como problema central à elaboração programática dos revolucionários. Como dissemos anteriormente, Caio Prado se colocava contra a tese de revolução democrático-burguesa do PCB, e encarava a debilidade teórica de seu partido como fruto da importação dessa teoria. Nesse marco, é ao localizar-se como crítico à nulidade teórica do PCB e oferecer uma visão alternativa, ainda que dentro do campo do nacional-reformismo, que o historiador consegue destaque e é qualificado como alguém capaz de ligar o marxismo à realidade nacional. Em última instância, Caio Prado muniu-se do essencial da teoria burocrática da III Internacional sob o comando de Stalin, e deu-lhe contornos da realidade nacional. Localiza-se em Caio Prado uma superação, ainda que parcial, da “teoria” da III IC, e é esse o conteúdo que os acadêmicos conferem à expressão “nacionalização do marxismo”, quando se referem a Caio Prado.
Antes de afirmar se Caio Prado nacionalizou o marxismo ou não, a pergunta que devemos fazer é a seguinte: a quem servem as idéias que ele defende? Servem de amálgama teórico para a esquerda, que se contenta em ser esquerda reformista, revestir-se de certo conteúdo marxista e defender os interesses históricos da burguesia, e não da classe operária, os da revolução socialista, os do comunismo.
Quando nos referimos ao marxismo, nos referimos a uma ferramenta teórica fruto da generalização das experiências da classe operária e do povo oprimido, durante um período, conturbado e repleto de contradições, de mais de 200 anos de luta de classes sob o capitalismo. A tarefa dos intelectuais revolucionários não é a de nacionalizar o marxismo, mas à luz dos aportes de grandes dirigentes revolucionários, como Lênin e Trostky, e da análise dos principais fenômenos da luta de classes, ser capaz de analisar o desenvolvimento da realidade e aportar teórica, estratégica e politicamente, em defesa dos interesses da revolução socialista. Qualquer debate acerca da nacionalização do marxismo, ou seja, de crítica à teoria do PCB e a influência stalinista por fora dessa visão mais geral, serve nada mais que para embelezar o legado de Caio Prado.
Quero aproveitar a oportunidade para dizer que a revista Iskra, no marco da amplíssima questão de contribuir para a recriação revolucionária do marxismo, enxerga como uma tarefa fundamental a crítica marxista aos principais expoentes de visões que afastam a teoria marxista da classe operária, ou o que é o mesmo, que afastam esta das suas tarefas revolucionárias, como as distintas defesas da idéia dos “países não-maduros” para a revolução socialista etc. Por isso nos dedicamos em nosso primeiro número a criticar não só Caio Prado Jr., como também Lukács, que é outra referência quase inconteste em setores da esquerda brasileira.
* Daniel Angyalossy Alfonso é editor da Revista Iskra, autor do artigo Caio Prado Júnior e a Gênese do Marximos Reformista no Brasil e militante da LER-QI
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