No dia 24 de março, na UNESP – Marília, ocorreu o debate “Lukács e o stalinismo”, como parte dos eventos de lançamento da revista Iskra nº 1. O debate reuniu o camarada Edison Salles (LER-QI) e Antônio Carlos Mazzeo, docente do câmpus e da direção do PCB. Discutindo o legado de Lukács e a relevância de sua contribuição ao marxismo, o debate teve momentos acalorados que refletiam a oposição de princípios entre os debatedores sobre como avaliar a obra de Lukács. Na impossibilidade de expressar aqui o debate em seu conjunto, publicamos abaixo um resumo da intervenção de Edison.
O tema da atividade, Lukács e o stalinismo, é também o título do artigo publicado na revista ISKRA. Essa revista é elaborada pela juventude universitária da LER-QI, que buscamos nos constituir como uma nova geração de intelectuais militantes revolucionários. E então cabe a pergunta: porque iniciar o projeto encarnado na revista ISKRA polemizando com autores como Lukács e Caio Prado Jr? Até mesmo alguns companheiros nos questionaram, por que não começar polemizando com, por exemplo, os autores pós-modernos que tanto peso possuem nas universidades?
Falando muito sinteticamente, poderia dizer que há dois motivos centrais para escolher a polêmica com Lukács (sobre Caio Prado Jr. não poderemos nos estender aqui).
O primeiro motivo tem a ver com uma característica que salta aos olhos quando observamos o panorama intelectual brasileiro. É que, mesmo no momento de maior defensiva histórica do marxismo, quando a burguesia imperialista desencadeou uma enorme ofensiva ideológica afirmando que o socialismo havia morrido e com ele também o marxismo – e é preciso reconhecer que até hoje sentimos o peso dessa ofensiva, basta ver a quantidade de jovens combativos e sinceramente decididos a lutar por uma sociedade que supere o capitalismo, que caem nas armadilhas do discurso autonomista e sua negação da política, da luta de classes, da necessidade de construir um partido revolucionário... – mesmo neste momento amplamente desfavorável para o marxismo, ele não foi completamente eliminado do cenário intelectual brasileiro. Ao contrário, em diversas universidades ele encontrou nichos onde pudesse permanecer, com a realização dos mais diversos eventos (palestras, debates, etc, que vêm aumentando ano a ano) e com a produção de dezenas de trabalhos a cada ano (projetos de iniciação científica, monografias, teses de mestrado e doutorado, até em alguns casos livre docência como recentemente defendeu o próprio prof. Mazzeo). Por outro lado, o preço a pagar por essa permanência foi muito alto, pois: a) esse marxismo se distanciou enormemente da classe operária, que no melhor dos casos foi tratada como mero “objeto de estudo”; b) os temas diretamente revolucionários foram praticamente excluídos de sua pauta de reflexão (sobretudo os problemas de estratégia, tática, programa, etc).
Num momento em que a força objetiva da própria crise começa a colocar novamente a questão operária no centro da cena política (seja com as notícias diárias sobre as demissões em massa em todo o mundo, seja através de as primeiras respostas operárias à crise em ações como a recente greve geral que mobilizou milhões de trabalhadores da França), dá para perceber facilmente a insuficiência desse “marxismo” que encontramos nas universidades (e veremos como a crítica a Lukács está ligada a isso).
O segundo motivo está menos ligado a características particulares brasileiras, e nesse sentido tem raízes mais profundas. É que a propaganda burguesa que proclamou furiosamente o fim do socialismo não estava “pendurada no ar”. Ao contrário, ela se sustentava no fato de que o capitalismo foi restaurado nos países onde a burguesia chegou a ser expropriada – me refiro à Rússia, ao Leste europeu, à China - sem que para isso fosse preciso detonar uma única bomba ou dar um único tiro; de que a restauração capitalista tenha se dado a partir das próprias contradições de sociedades que estavam estagnadas devido ao domínio totalitário de burocracias que sufocavam toda atividade operária, e com isso também impediam o próprio desenvolvimento econômico.
O que quero dizer com isso é que hoje todos nós que nos engajamos na luta pelo fim do capitalismo, temos um enorme desafio que é recuperar o marxismo e devolver às massas, em primeiro lugar aos trabalhadores mais avançados, a idéia de que é possível destruir esse sistema decadente e substituí-lo por uma verdadeira democracia de massas apoiada sobre a auto-organização dos trabalhadores. Mas para fazer isso, para devolver uma perspectiva revolucionária aos trabalhadores, e também à juventude, temos que ajustar contas com os enormes desvios de rota que se fizeram em nome do marxismo, e demonstrar que aquelas burocracias eram inimigas de morte do verdadeiro marxismo.
E aqui entra o Lukács. Não porque ele defendesse toda a concepção dogmática e mecanicista imposta pela “doutrina oficial” da burocracia da URSS. Mas justamente porque ele usava sua enorme erudição – tanto em termos das obras clássicas de Marx e Engels, como em relação à cultura ocidental em geral, desde os gregos e passando pelo renascimento e a filosofia clássica alemã –, usava essa erudição para dar uma nova legitimação ao poder das burocracias governantes na URSS e no Leste europeu.
E isso não apenas porque ele silenciou sobre inúmeras atrocidades perpetradas por essas burocracias governantes (como mostramos na revista). Mas porque ele emprestou, até o fim da vida e no curso de sua sinuosa trajetória, emprestou o seu prestígio como pensador, e seu refinamento, para a defesa de vários dos pilares teórico-políticos sobre os quais a burocracia se sustentou.
Para ficar em alguns exemplos, que talvez sejam os mais significativos: Ele defendeu a) a teoria do “socialismo num só país”; b) a teoria da Frente Popular (colaboração de classes com a burguesia em nome da luta contra o fascismo); c) o Pacto de Varsóvia (isto é, a subordinação completa dos países do Leste à burocracia do Moscou, como vemos nas críticas a Imre Nagy no livro “Pensamento Vivido”); d) a “coexistência pacífica” com o imperialismo (chamada por ele de “nova forma da luta de classes”, por exemplo no livro “Conversando em Lukács”). Também não podemos deixar de mencionar que ele, em diversos escritos, corrobora a visão da burocracia de que a Oposição de Esquerda (especialmente os trotskistas) era o “principal inimigo”, ora considerada como “agente do fascismo”, ora como “agente do imperialismo norte-americano” (por exemplo, em “A Destruição da Razão”, entre outras obras).
Por outro lado, é preciso “equilibrar” nossa crítica dizendo que algumas idéias levantadas por Lukács, e defendidas por alguns lukacsianos brasileiros, possibilitaram que tenhamos nos encontrado no mesmo lado da trincheira em vários combates ideológicos que tivemos que travar nos últimos anos. Em especial, duas idéias: a) a volta a Marx, que apesar de que criticamos quando tomada de maneira unilateral (como se fosse possível dar um salto mortal por sobre mais de 100 anos de história do movimento operário internacional), fornece elementos para que nos reapropriemos do que há de vivo, de dialético, de revolucionário no pensamento de Marx, em contraposição às visões dogmáticas e mecânicas que imperaram sob o stalinismo; b) a centralidade do trabalho, que permitiu combater corretamente as diversas vertentes que definiam que as novas tecnologias teriam levado ao “fim do trabalho”, ou então aquelas que diziam que a centralidade da classe trabalhadora havia se perdido no labirinto dos “novos movimentos sociais”.
Porém num momento em que a realidade exige respostas audazes dos marxistas, achamos que vale a pena convidar os lukacsianos a dar mais um passo a frente na superação dos impasses deixados pelo “mestre”. E aos jovens marxistas em formação, que se deparam hoje em dia com um verdadeiro “culto a Lukács”, chamamos a aprender o quanto quiserem com suas lições eruditas, porém sem permitir que sua sombra bloqueie o caminho para a adesão apaixonada ao movimento operário e suas lutas; dizemos enfim, o que a realidade nos exige hoje é que sejamos verdadeiros marxistas revolucionários!
*Publicado originalmente no jornal Palavra Operária n°55
O tema da atividade, Lukács e o stalinismo, é também o título do artigo publicado na revista ISKRA. Essa revista é elaborada pela juventude universitária da LER-QI, que buscamos nos constituir como uma nova geração de intelectuais militantes revolucionários. E então cabe a pergunta: porque iniciar o projeto encarnado na revista ISKRA polemizando com autores como Lukács e Caio Prado Jr? Até mesmo alguns companheiros nos questionaram, por que não começar polemizando com, por exemplo, os autores pós-modernos que tanto peso possuem nas universidades?
Falando muito sinteticamente, poderia dizer que há dois motivos centrais para escolher a polêmica com Lukács (sobre Caio Prado Jr. não poderemos nos estender aqui).
O primeiro motivo tem a ver com uma característica que salta aos olhos quando observamos o panorama intelectual brasileiro. É que, mesmo no momento de maior defensiva histórica do marxismo, quando a burguesia imperialista desencadeou uma enorme ofensiva ideológica afirmando que o socialismo havia morrido e com ele também o marxismo – e é preciso reconhecer que até hoje sentimos o peso dessa ofensiva, basta ver a quantidade de jovens combativos e sinceramente decididos a lutar por uma sociedade que supere o capitalismo, que caem nas armadilhas do discurso autonomista e sua negação da política, da luta de classes, da necessidade de construir um partido revolucionário... – mesmo neste momento amplamente desfavorável para o marxismo, ele não foi completamente eliminado do cenário intelectual brasileiro. Ao contrário, em diversas universidades ele encontrou nichos onde pudesse permanecer, com a realização dos mais diversos eventos (palestras, debates, etc, que vêm aumentando ano a ano) e com a produção de dezenas de trabalhos a cada ano (projetos de iniciação científica, monografias, teses de mestrado e doutorado, até em alguns casos livre docência como recentemente defendeu o próprio prof. Mazzeo). Por outro lado, o preço a pagar por essa permanência foi muito alto, pois: a) esse marxismo se distanciou enormemente da classe operária, que no melhor dos casos foi tratada como mero “objeto de estudo”; b) os temas diretamente revolucionários foram praticamente excluídos de sua pauta de reflexão (sobretudo os problemas de estratégia, tática, programa, etc).
Num momento em que a força objetiva da própria crise começa a colocar novamente a questão operária no centro da cena política (seja com as notícias diárias sobre as demissões em massa em todo o mundo, seja através de as primeiras respostas operárias à crise em ações como a recente greve geral que mobilizou milhões de trabalhadores da França), dá para perceber facilmente a insuficiência desse “marxismo” que encontramos nas universidades (e veremos como a crítica a Lukács está ligada a isso).
O segundo motivo está menos ligado a características particulares brasileiras, e nesse sentido tem raízes mais profundas. É que a propaganda burguesa que proclamou furiosamente o fim do socialismo não estava “pendurada no ar”. Ao contrário, ela se sustentava no fato de que o capitalismo foi restaurado nos países onde a burguesia chegou a ser expropriada – me refiro à Rússia, ao Leste europeu, à China - sem que para isso fosse preciso detonar uma única bomba ou dar um único tiro; de que a restauração capitalista tenha se dado a partir das próprias contradições de sociedades que estavam estagnadas devido ao domínio totalitário de burocracias que sufocavam toda atividade operária, e com isso também impediam o próprio desenvolvimento econômico.
O que quero dizer com isso é que hoje todos nós que nos engajamos na luta pelo fim do capitalismo, temos um enorme desafio que é recuperar o marxismo e devolver às massas, em primeiro lugar aos trabalhadores mais avançados, a idéia de que é possível destruir esse sistema decadente e substituí-lo por uma verdadeira democracia de massas apoiada sobre a auto-organização dos trabalhadores. Mas para fazer isso, para devolver uma perspectiva revolucionária aos trabalhadores, e também à juventude, temos que ajustar contas com os enormes desvios de rota que se fizeram em nome do marxismo, e demonstrar que aquelas burocracias eram inimigas de morte do verdadeiro marxismo.
E aqui entra o Lukács. Não porque ele defendesse toda a concepção dogmática e mecanicista imposta pela “doutrina oficial” da burocracia da URSS. Mas justamente porque ele usava sua enorme erudição – tanto em termos das obras clássicas de Marx e Engels, como em relação à cultura ocidental em geral, desde os gregos e passando pelo renascimento e a filosofia clássica alemã –, usava essa erudição para dar uma nova legitimação ao poder das burocracias governantes na URSS e no Leste europeu.
E isso não apenas porque ele silenciou sobre inúmeras atrocidades perpetradas por essas burocracias governantes (como mostramos na revista). Mas porque ele emprestou, até o fim da vida e no curso de sua sinuosa trajetória, emprestou o seu prestígio como pensador, e seu refinamento, para a defesa de vários dos pilares teórico-políticos sobre os quais a burocracia se sustentou.
Para ficar em alguns exemplos, que talvez sejam os mais significativos: Ele defendeu a) a teoria do “socialismo num só país”; b) a teoria da Frente Popular (colaboração de classes com a burguesia em nome da luta contra o fascismo); c) o Pacto de Varsóvia (isto é, a subordinação completa dos países do Leste à burocracia do Moscou, como vemos nas críticas a Imre Nagy no livro “Pensamento Vivido”); d) a “coexistência pacífica” com o imperialismo (chamada por ele de “nova forma da luta de classes”, por exemplo no livro “Conversando em Lukács”). Também não podemos deixar de mencionar que ele, em diversos escritos, corrobora a visão da burocracia de que a Oposição de Esquerda (especialmente os trotskistas) era o “principal inimigo”, ora considerada como “agente do fascismo”, ora como “agente do imperialismo norte-americano” (por exemplo, em “A Destruição da Razão”, entre outras obras).
Por outro lado, é preciso “equilibrar” nossa crítica dizendo que algumas idéias levantadas por Lukács, e defendidas por alguns lukacsianos brasileiros, possibilitaram que tenhamos nos encontrado no mesmo lado da trincheira em vários combates ideológicos que tivemos que travar nos últimos anos. Em especial, duas idéias: a) a volta a Marx, que apesar de que criticamos quando tomada de maneira unilateral (como se fosse possível dar um salto mortal por sobre mais de 100 anos de história do movimento operário internacional), fornece elementos para que nos reapropriemos do que há de vivo, de dialético, de revolucionário no pensamento de Marx, em contraposição às visões dogmáticas e mecânicas que imperaram sob o stalinismo; b) a centralidade do trabalho, que permitiu combater corretamente as diversas vertentes que definiam que as novas tecnologias teriam levado ao “fim do trabalho”, ou então aquelas que diziam que a centralidade da classe trabalhadora havia se perdido no labirinto dos “novos movimentos sociais”.
Porém num momento em que a realidade exige respostas audazes dos marxistas, achamos que vale a pena convidar os lukacsianos a dar mais um passo a frente na superação dos impasses deixados pelo “mestre”. E aos jovens marxistas em formação, que se deparam hoje em dia com um verdadeiro “culto a Lukács”, chamamos a aprender o quanto quiserem com suas lições eruditas, porém sem permitir que sua sombra bloqueie o caminho para a adesão apaixonada ao movimento operário e suas lutas; dizemos enfim, o que a realidade nos exige hoje é que sejamos verdadeiros marxistas revolucionários!
*Publicado originalmente no jornal Palavra Operária n°55
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