domingo, 21 de junho de 2009

Militarização da USP incita novos debates


É preciso discutir as tarefas da nova geração universitária

Artigo escrito em colaboração com o Boletim Desatai o Futuro

A greve da USP não apenas fez reviver o movimento estudantil, mas sacudiu a intelectualidade num clima de forte polarização política. É tarefa primordial da juventude universitária seguir criticamente os debates que ganham o espaço público. Uma nova onda de politização percorre os meios estudantis. É hora de refletir, e radicalizar posições, antes de métodos.

Pesos pesados da vida intelectual brasileira se movem contra a presença policial na USP

Antonio Candido, Marilena Chauí e Maria Victoria Benevides falaram com distintas vozes e pelo menos uma mensagem comum: repúdio à presença policial na USP e ao que isso significa historicamente; apoio ao movimento democrático de estudantes, funcionários e docentes contra a reitora atual e a estrutura de poder que a sustenta.
Marilena Chauí, filósofa de Espinosa e do otimismo petista, insuspeita portanto de qualquer revolucionarismo, pôs o dedo na feria e esclareceu: não basta pedir eleições diretas para substituir Suely Vilela; é preciso desconstruir a própria estrutura de poder da Universidade. Colocou a luta contra a repressão e o autoritarismo como intermináveis, e chamou os estudantes presentes a verem-se como continuadores de uma história de resistência que passa por 1964, e prosseguirá através das gerações.
Antonio Candido, expoente maior da crítica literária brasileira, expôs seu protesto veemente à PM na USP, que caracterizou como um atentado aos direitos democráticos mais sagrados. Localizou do ponto de vista histórico a formação da USP e da “Faculdade de Filosofia”, a qual veio trazer a integração do pensamento que faltava ao ensino até então puramente elitista das Faculdades tradicionais (de Direito, Engenharia e Medicina). Em sua visão histórica, que cobre mais de meio século, a USP se define, antes de tudo, pelo seu papel na própria criação e sustentação da vida cultural do país. É a partir de seu próprio significado progressista na história do país que deve ser defendida atualmente.

O outro lado: um novo fortalecimento do discurso conservador

No plano teórico, não é possível passar despercebido o deslocamento semântico que a palavra “democracia” vem sofrendo no Brasil nos últimos anos. Se vemos o regime atual em perspectiva, a mudança de significado do termo é gritante: do forte conteúdo social que carregava nos anos oitenta, quando vinha impregnada das mais altas aspirações populares, da esperança de democratização de todas as esferas da sociedade brasileira, acalentada em meio às mesmas mobilizações operárias e populares que tragicamente eram conduzidas para uma mudança de regime favorável à manutenção dos interesses capitalistas nacionais e estrangeiros; para o esquálido conceito dos dias atuais, de cunho nitidamente burguês, em que significa acima de tudo o peso de instituições completamente alheias às massas, e o uso acerbo da violência coercitiva “legítima”.
A diferença entre ambos, em todo caso, adquire uma clareza inequívoca à luz dos acontecimentos bárbaros da primeira metade de junho. Afinal, o que vimos por parte da direita descarada, disposta a apoiar a presença da polícia mesmo depois de suas consequências nefastas mostrarem-se com toda a clareza?— O discurso de que a democracia pressupõe normas e o recurso legítimo à violência para defender estas normas. A polícia, as prisões, a repressão, não somente são parte integrante deste conceito de democracia, mas compõem um núcleo cada vez mais sobressalente deste mesmo conceito.
Transformando toda aspiração democrática da humanidade em ilusão, e cunhando uma deformação conceitual em que o regime democrático se caracterizaria apenas pelo fato de que o governo constituído aceita a realização de competição ordenada pelo poder (capaz promover uma “circulação de elites” cujo limite é dado estritamente pela necessidade de legitimar junto ao povo a sua própria opressão. Enfim, uma conceituação em que o que fica de fora é simplesmente – tudo.
Os anos recentes viram mais de um exemplo da aplicação prática do conceito. Na infame invasão da PM à PUC-SP em 2007, trinta anos depois do coronel Erasmo Dias, foi o argumento empunhado por um Cláudio Gonçalves Couto, então diretor do Depto de Política da PUC. A reitora Suely Vilela o emprega agora para exigir “lei e ordem” na USP, enquanto gente como a historiadora Maria Hermínia Tavares de Almeida – que até já foi marxista e produziu investigações relevantes, antes de se fazer “tucana” – faz coro.
Porém uma atuação tão explícita, como a da PM no dia 09/06, é disfuncional, desmascara muito rápido o conteúdo por trás do rótulo. Assim, fez com que importantes setores conservadores mais contidos se escondessem atrás de uma posição que reivindicava mais “tranqüilidade” policial, condenando os “possíveis exageros”. A já citada Maria Herminia é quiçá o caso mais emblemático dessa posição: retira-se o foco da presença da polícia, localizando o problema em seus “excessos”, ao passo que se transmite a responsabilidade da crise aos grevistas.
Na juventude a situação é tão grave ou mais: o ultra-individualismo consumista alimentado por décadas de neoliberalismo, somados à apatia política e o desinteresse pelas questões sociais, tornaram-se o caldo de cultura para os piores valores direitistas.
Recentemente um conhecido articulista (Clóvis Rossi), o qual, é bom lembrar, não vai além da centro-esquerda no espectro político, espantava-se com a falta de solidariedade entre os estudantes, ou pior ainda, com o aparecimento de um setor expressivo capaz de apoiar a repressão a seus próprios colegas, e o que dizer então dos trabalhadores da universidade.
Particularmente naquelas faculdades uspianas como as de Administração, Economia e Engenharia, em que a principal ambição na vida dos estudantes é alcançar a posição de gestores do grande capital, cresce de forma purulenta uma direita abertamente retrógrada.
Mais importante, as autoridades acadêmicas, diretamente ligadas a grandes empresas e ao aparato do governo estadual, fomentam os preconceitos antipopulares e antissindicais e os manipulam como podem. No movimento atual, foram feitas mais de uma tentativa de promover “plebiscitos” ou “abaixo-assinados” para dar uma aparência de “base de massa” a essa política alentada de maneira vil pelos lacaios de Suely Vilela e José Serra. Um pequeno “laboratório” do que seria um governo deste último, manipulando os preconceitos da classe média para obter sustentação para um projeto “linha dura”, capaz de atravessar a crise sem vacilar quando o assunto for reprimir as lutas operárias e populares?

Por uma nova intelectualidade radical, por um novo movimento estudantil

Vendo a situação atual em profundidade, isto é, também no que ela já carrega de forma embrionária dos conflitos maiores que estão por vir, algumas questões começam a ganhar maior claridade.
É que, por mais importante – e até mesmo, na conjuntura atual, insubstituível – que possa ser para o movimento o apoio de personalidades do calibre das que protagonizaram o ato de repúdio à PM na USP, verdadeiros arautos democráticos em tempos de definhamento e sistemática mutilação da democracia, bastiões de uma tradição progressista que busca apoiar-se nas maiores realizações democráticas da história nacional. Por mais importante que possa ser tudo isso, e de fato o é, não é nem será suficiente para nos salvará de grandes calamidades.
Pois a mesma onda direitista que assistimos hoje, se por um lado é sim uma conseqüência direta do longo período neoliberal, nem por isso deixa de ser, vista de outro ponto de vista, conseqüência do tipo de democracia construída no país com o término da ditadura militar; uma democracia que foi pactuada e que perdoou os ditadores e torturadores; e que o fato de que estes estejam livres (e muitos ocupando postos em diversos setores do Estado, incluída a PM), e que os lutadores sejam criminalizados como acontece hoje na USP e em tantos movimentos sociais; é a outra face do mesmo pacto de transição, em que o PT surgiu com seu projeto “democrático e popular”, incapaz porém de superar o horizonte miserável do capitalismo brasileiro.
Pois para fazê-lo é preciso construir um projeto realmente alternativo, que signifique uma democratização radical da sociedade brasileira em todas as suas esferas, a universidade incluída.
E o que isso significa? Num plano geral, significa não deter o conceito da democracia nos aviltantes limites do regime da propriedade capitalista; mas estendê-la ao efetivo exercício do poder pelas massas a partir da sua auto-organização.
E no que tange à universidade, significa lutar por uma universidade em que a comunidade universitária determine os rumos do ensino, da pesquisa e da vida acadêmica em geral, por sobre a vontade de monopólios e governos capitalistas, e a partir dos mais elevados padrões científicos e do mais apurado sentido das verdadeiras necessidades sociais.
Uma universidade em que o ato de colocar o conhecimento a serviço da maioria trabalhadora do país, longe de ser uma restrição ao conhecimento, seja a condição consciente do alargamento de suas possibilidades.
Uma universidade, portanto, em que o acesso da maioria pobre e trabalhadora não seja uma “dádiva” ou uma mera ilusão, mas sim uma conquista democrática imorredoura; uma conquista arrebatada pela luta aos monopólios privados que dominam o ensino superior no Brasil, e às camarilhas privatizantes que infestam o que resta do ensino público, a começar da USP.

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