Por Edison Salles
Desculpem os leitores a demora para esta postagem, mas algo no caderno Mais! deste domingo (FSP 28/06/09) merece um comentário, pelo menos para não passar em branco. É que a contracapa do caderno traz uma entrevista com o conhecido historiador francês Paul Veyne.
Como isto é um blog, e não o espaço para longas discussões acadêmicas, vou direto ao ponto: a entrevista fornece um belo exemplo do atual estatuto das “ciências do espírito” – o historiador escarnece da história (aliás, da história real, com minúscula, tanto como da História ciência, com maiúscula), e o faz com gosto, ao que parece.
Grande erudito e especialista em Grécia e Roma antigas, nosso sábio reflete muito do irracionalismo ainda em voga, e formula idéias como a de que “a história não tem mais utilidade que a astrologia. É um assunto de pura curiosidade ou, pelo menos, é preciso tratá-la como tal. A história não ensina nada e não permite tirar lições eternas”. Ora, não é pouco, considerando que é dito com autoridade de alguém que conhece mais da história do que 99,99% dos leitores (para ficar num número modesto)...
Como já avisei que pretendo tirar proveito das prerrogativas do “estilo blog” de escrita (ao qual ainda estou me acostumando, e a custo), vou pular a parte de demonstrar o absurdo do rebaixamento da história (que já foi considerada a ciência única do futuro) ao patamar das curiosidades astrológicas, e aproveitar para destacar outro ponto.
É que, se comparamos as passagens do raciocínio desenvolvido por Veyne com as fórmulas ideológicas que depois são apresentadas como conclusão, é impossível não reparar numa pequena distância, um “gap” lógico, que corresponde precisamente ao espaço necessário para extrair uma generalização grosseira e todo-poderosa, de premissas bem mais cuidadosas (ainda que não menos errôneas).
Fico no exemplo da frase já citada (há outros no texto). Reparem que Veyne afirma que “a história não ensina nada”, para agregar imediatamente que ela “não permite tirar lições eternas”. Ora, se ela não ensina nada, qual a necessidade da palavrinha “eternas” para qualificar essas lições que dela não podem ser tiradas? A resposta é clara: com esse acréscimo inocente deixa-se implícito o grotesco da posição contrária, isto é, quem quer que pretenda extrair qualquer lição da história (que nosso erudito já decretou, não ensina nada) só pode estar em busca de "leis eternas”, da verdade absoluta, ou outros absurdos próprios de dogmáticos e afins.
Termino com algo que vai no mesmo sentido; para isso precisarei citar mais um trecho, vamos lá: “A mesma coisa aconteceu com as ciências humanas por volta de 1860. Esse momento corresponde à contestação radical do cristianismo. A partir desse corte, descobrimos que tudo é histórico, e é a partir daí que as ciências humanas se desenvolvem, libertando-se de todos os preconceitos de nossos antepassados. Essa mudança é marcada pelo filósofo Friedrich Nietzsche. Ele foi o primeiro a mostrar que as noções ditas eternas tinham, na verdade, uma história”.
O que essa citação demonstra? É claro que, em primeiro lugar, salta aos olhos que seja Nietzsche nos anos 1860 o responsável por “historicizar” as noções antes tidas como eternas, e não Marx a partir da década de 1840, ou mesmo Hegel desde o início do mesmo século. Mas, para além dessa óbvia distorção – em que o mesmo Nietzsche que tanto contribuiu para destruir qualquer conceito objetivo de história, na linha do “não há fatos, apenas interpretações”, seja apresentada como seu iniciador – para além disso, devemos reparar em algo mais sutil, porém pleno de significação. É que o mesmo Veyne que equiparou a história à astrologia, precisa apoiar-se em certas verdades materialistas (afins ao pensamento marxista) para conferir alguma consistência a seus enunciados. Ou seja, para afirmar a tradição pós-moderna, apresenta-a como portadora de conteúdos que ela mesma se limitou a “pinçar” do arcabouço de uma outra corrente oposta, a saber novamente, o marxismo. Assim, Veyne responde à pergunta seguinte, sobre Foucault, dizendo: “Foucault demonstrou que as convicções, por mais fortes que possam ser, devem ser analisadas dentro de seus contextos históricos”. Ora, pensando na tríade que o próprio Foucault gostava de apresentar como fundadora do pensamento contemporâneo, Nietzsche, Freud e Marx, quem senão este último poderia realmente reivindicar a paternidade daquela noção histórica?
quarta-feira, 1 de julho de 2009
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