Por André Augusto
Na primeira sexta-feira deste fevereiro, o Governo dos Estados Unidos deu seu “apoio” ao perdão de toda a dívida do Haiti com os organismos internacionais de crédito e pediu doações imediatas para a reconstrução do país após o terremoto do mês passado. "Hoje expressamos nosso apoio ao que o Haiti
precisa e merece: o perdão da dívida multilateral", disse o secretário do Tesouro americano, Timothy Geithner, em declaração antes da reunião de ministros do Grupo dos Sete (sete países mais industrializados do mundo), que aconteceu naquele fim de semana, no Canadá. Em outras palavras: a filantropia da comunidade internacional
está a decidir se os haitianos
merecem deixar de pagar pelas mortes, pelos assassinatos políticos, pela repressão militar, pela miséria e pela fome que o colonialismo centenário das mesmas nações que administram a atual ajuda oficial transformou em
dívida. A dívida do Haiti monta a US$ 1,314 bilhão. Com uma dívida tão vultosa, curiosa é a nota paralela: a taxa de analfabetismo é de
47% entre os homens e de 42% entre as mulheres; a população abaixo da linha de pobreza é de
67% e o desemprego urbano soma estarrecedores
70%. A taxa de mortalidade infantil é de
83 crianças a cada 1000 nascidas.
De tudo isso, depreende-se que a contração da dívida e a resolução dos problemas nacionais do Haiti não caminham a braços dados.
O dinheiro que o Haiti deve ao fundo mundial foi utilizado pelo fundo mundial contra o Haiti.
Enquanto se abarrota a ajuda internacional (por volta de US$ 670 milhões até agora) nos depósitos da ONU, que engordam como se possuíssem estômagos, às trabalhadoras e trabalhadores haitianos a ajuda chega a conta-gotas. É realmente difícil disputar alimentos com espaços tão esfomeados, e o pior para o povo pobre de Porto Príncipe, de Leogane e outras regiões afetadas pelo sismo é que mais uma bocarra se apresenta escancarada para disputar os seus recursos: as goelas lascivas das construtoras brasileiras e norte-americanas. Entre Cila e Caribde, a água entra na boca daquele cujos dentes são mais afiados, e alguns dentes do século XXI disparam fuzis e balas de borracha também.
Todos os carregamentos importantes, trazendo água, alimentos e aparelhos médicos, estão sob controle dos operativos militares dos EUA e seus gigolôs indiretos, os lacaios da ONU. Nos acampamentos de tendas, para “
entregar ajuda”, realiza-se comumente deslocamentos e paradas militares, parecidos com as escoltas de Obama, com caminhões
Hummer, cada um com seis pessoas, todos fortemente armados e um posicionamento territorial espetacular criando um ambiente de hostilidade, de guerra.
É de bom aviso não contribuir na amnésia crônica da grande burguesia em relação à sua história recente, e lembrar que o quepe do imperialismo mundial, os EUA, que transforma todos os outros países em seus próprios proletários, só anunciou o “apoio” ao perdão da dívida (o verdugo liberando a vítima de pagar pela lâmina que utilizou para estripá-la) após várias nações terem anunciado a “boa nova”. França, Itália e até a Venezuela já o haviam feito publicamente. A resolução deste encontro filantrópico ficou a cargo – creiam – de ninguém menos que dos
ministros e governadores dos bancos centrais do G7, Alemanha, Canadá, EUA, França, Reino Unido, Itália e Japão. Alguns desses países têm relações históricas estreitas com o Haiti;
nenhuma dessas relações pode ser caracterizada como humanitária.
Por exemplo, quanto à orgia da orquestra da carnificina no Haiti entre a França e seu colonialismo no século XVIII e os EUA, a história é eloqüente. Em 1791 os escravos haitianos das plantações levantaram-se contra seus amos franceses; o resultado da guerra civil foi a derrota e expulsão dos exércitos aventureiros de Napoleão Bonaparte da América, e o estabelecimento da primeira República negra da história. Em 1804, estabeleceu-se a primeira república independente da América Latina. Temendo que o Haiti se transformasse num exemplo da luta contra o colonialismo e o escravismo, os EUA, juntamente com as nações européias, negaram-se a reconhecer o estatuto de república independente ao Haiti, por meio do “grande e libertário” Thomas Jefferson, mais um exemplo de facínoras trasmudados em heróis pela fantasia norte-americana. Isolaram o heróico país caribenho até 1825 quando, pela força dos fatos e dos próprios haitianos, além da necessidade de finalizar o embargo econômico pelo comércio de produtos tropicais, os EUA exigiram o pagamento de uma compensação, para reconhecimento “legal” da independência haitiana, de uma soma equivalente a atuais 20 bilhões de dólares, como indenização dos lucros perdidos pela metrópole na figura de suas plantações e seus escravos. Que orgulho de reivindicação!
Para pagar os juros dessa soma (uma vez que obviamente não poderiam pagar a totalidade daquela quantia astronômica) os haitianos endividaram-se durante mais de um século. Em 1947, a dívida com a antiga potência colonial foi suspensa, apenas para que se reiniciasse um novo ciclo de endividamento. O imperialismo militar norte-americano assumiu as rédeas da brutalização do Haiti no século XX. De 1915-1934 invadiu e ocupou o país; sustentou as sangrentas ditaduras de François Duvalier e Jean-Claude Duvalier entre 1957-1986; o golpe militar de Raúl Cedrás, em 1991, que derrocou o recém-eleito Jean-Bertrand Aristide, teve amplo suporte em George H. W. Bush, pai do pirata do Oriente Médio. Em 1994, por ocasião do descontentamento popular com a nova ditadura, o presidente Bill Clinton reinstalou Aristide na presidência após uma nova invasão de fuzileiros navais, a maior registrada no Haiti; reinstaurou Aristide com a condição de implantar medidas neoliberais determinadas pelo FMI, com os quais o tíbio Jean-Bertrand corroborou de joelhos. Em 2004, os EUA, sob o comando de George Bush filho, apoiou o golpe de estado da direita local, removendo Aristide do país e perseguindo seus simpatizantes.
Dando continuidade à centenária política imperialista, Barack Obama, comandante máximo da ONU e por sua vez da MINUSTAH, as tropas militares de invasão que ocupam o Haiti desde 2004, coloca o fundo de apoio humanitário à catástrofe sísmica no Haiti nas mãos de George W. Bush e de Bill Clinton, responsáveis diretos da opressão do povo haitiano nas últimas décadas.
O Reino Unido e o Canadá mostram o rosto no Caribe com o adorno das carapaças azuis da MINUSTAH; e o Canadá, adicionalmente, serve de quartel-general seguro para as Conferências de banqueiros, primeiros-ministros, agentes financeiros do FMI, agiotas, usurários, presidentes, órgãos de fomento ao desenvolvimento do continente, muitas vezes todos eles unidos numa pessoa só e, enfim, toda a melhor parte e a nata das aves de rapina imperialistas.
A tragédia social haitiana é alavanca para o capital financeiro para os imperialistas Nem os mais exitosos sobreviventes do Haiti desde o terremoto –
as mercadorias dos supermercados centrais – escaparam das indissolúveis cadeias que representam o terremoto social do imperialismo norte-americano e europeu. Há algumas semanas, uma máquina, um bulldozer, utilizada para limpar os escombros do maior supermercado do Haiti, o Mercado Caribenho, causou um colapso secundário, ruindo as estruturas já emaciadas da construção, para vê-la abaixo no momento seguinte.
Vários haitianos se encontravam no local nesse momento, uns ajudando nas buscas e outros procurando artigos úteis. Mesmo inundado por ajudantes, o Haiti segue faminto. A dispersão da ajuda internacional perde seu caráter
útil ao povo haitiano enquanto ganha um caráter
utilitário ao imperialismo, agora sob a égide da abertura de licitações às empreiteiras multinacionais e corporações bilionárias para a reconstrução do Haiti.
Porto Príncipe fica cada vez mais longe das mãos das trabalhadoras e do povo haitiano ao mesmo tempo em que são contratados por essas empresas para montar com suas mãos bloco após bloco. Na última Conferência do Canadá, os bucaneiros dos países centrais acharam a idéia brilhante – para eles e para a solução de seus problemas domésticos, devidos à crise econômica – de amenizar a situação haitiana com o mesmo roteiro úmido que usam em seus países industrialmente mais avançados – a “criação de empregos”. Sua filantropia burguesa só foi tão longe quanto a fumaça de suas fábricas: contratar
10,000 haitianos, a um salário de fome de 5 (cinco!) dólares cada um, durante dez anos para ajudar na reconstrução. Do ponto de vista da necessidade de emprego do povo trabalhador do Haiti isso é absolutamente insuficiente; por outro lado, salta aos sentidos como os EUA se aproveita da situação de miséria do Haiti para impor condições de trabalho verdadeiramente escravagistas. Enquanto isso, no Chile, a “socialista” Michelle Bachellet e o empresário reacionário Sebastián Piñera, passado e futuro presidenciais, declamam ao som das trombetas das Forças Armadas que ninguém “pode se aproveitar de situações de catástrofe para cometer atos delituosos”, acusando os esforços justos e desesperados dos trabalhadores chilenos de apanhar os alimentos e água potável nos supermercados locais, negando-se a sobreviver com evangelhos governamentais!
No regime do capital monopolista, a condição principal para a escravidão exige a doação, por parte do capitalista, de parte irrisória do produto que o trabalhador extraiu dos seus esforços corpóreos e espirituais, ao trabalhador, ou seja,
as condições escravistas da produção se alimentam do assalariado; a vulgaridade contrária da burguesia neoliberal, de que escravidão implica simplesmente falta de recompensa alguma, ajuda a justificar a atitude criminosa dos gerentes de bancos centrais na Conferência do Canadá de “criação de empregos”, que só financiarão em parcelas a continuidade da fome dos haitianos. Empregos esses que, sem dúvida, eles mesmos odiariam executar.
Esses planos de licitações beneficiarão primordialmente as empresas imperialistas; essa “colaboração filantrópica” não cairá sobre os haitianos senão como grandes rochedos de concreto, esmagando sua iniciativa de auto-reconstrução, a partir de seu próprio controle dos recursos recebidos, do país arrasado pela catástrofe natural. Implicará em lucros sísmicos para o capital transnacional e –
uma coisa bela é uma coisa para sempre! - esses contratos de licitação às empreiteiras internacionais (é bom lembrar que nenhuma delas é haitiana) serão lavrados pela ONU, a mesma organização que se arrogou o oligopólio da ajuda internacional e continua a conduzir irresponsavelmente o aumento trágico das mortes desde o fim do terremoto, há já quase dois meses.
Isso trará, além de um novo ciclo de endividamento após o “apagar da dívida externa”, o recrudescimento do status de colônia do Haiti, subordinado como tal pelas potências bélicas, com o auxílio nada sutil do papel servil do governo haitiano de René Préval e do primeiro-ministro Jean-Max Bellerive.
A comida entregue pelos carros da ONU é ainda extremamente insuficiente, e os meios midiáticos imperialistas nem se esforçam por ocultá-lo (basta observar a maneira com que as mulheres haitianas são obrigadas a se engalfinhar desesperadamente umas sob as outras para apanhar pequenos sacos de arroz). Adicionalmente a este caos provocado pela ONU, os lugares de distribuição de alimentos são secretos, informado apenas às mulheres, já que, segundo os cálculos inconseqüentes das Nações Unidas, “
as mulheres tendem a obrigar-se moralmente a entregar comida a seus familiares, mais que os homens”. Isso só pode significar, numa conjuntura em que não há comida suficiente a todos, a seguinte estatística:
aumento da violência contra a mulher, na busca por alimentos. E é necessário distinguir a causa da fome e a operação das consequencias. Pois nem chega perto das taxas monstruosas de violência contra as haitianas pelos soldados da MINUSTAH, que fornecem de maneira bárbara comida em troca de sexo, de silêncio forçado e de outros trabalhos humilhantes às heróicas mulheres do Haiti!
Nesse sentido, a ONU oficialmente decidiu resolver seus próprios problemas criando outros muito maiores para os haitianos; para poder fazer sobreviver sua invasão e controle militar no Haiti, precisa fazer sangrar e arrepiar de fome seus habitantes. Ao fim e ao cabo, a “decisão” do cancelamento da dívida externa do Haiti não tem força para entrar em vigência, e os haitianos continuam a financiá-la aos países imperialistas em decisivas prestações:
pagam-na com suas vidas ao invés de pagá-la com suor. O mais alarmante de tudo – exceto aos ouvidos da “comunidade internacional” - é que o período das chuvas já começou no Haiti, atrasando-se um pouco do esperado (meio de março). A chuva, ao atingir as “cidades de tenda”, estendidas por toda a capital e nos campos de refugiados, já mudou a figura de cor ao povo pobre haitiano, que sem abrigo seguro contra as tempestades sazonais, sofreram as primeiras baixas. A primeira chuva fez 8 vítimas fatais, afora as mulheres haitianas que trabalharam noite adentro para retirar a água das barracas com bacias. Mas o empilhamento de dejetos humanos e corpos das vítimas nas tendas de pano colocam o mais alto alarme à ameaça da disseminação de doenças epidêmicas, que se podem mostrar incontroláveis uma vez desencadeadas, pela mesma falta de infra-estrutura e ausência de estações médicas minimamente capazes de se fixar seguramente em algum terreno. Além da contaminação de alimentos, que podem causar a cólera e a salmonela, a infestação de mosquitos vetores de doenças, como a malária e a dengue, também é uma preocupação candente dos moradores dos campos de refugiados.
E os especialistas em saúde pública que vão ao Haiti vão para fazer entrevistas e entregar o relatório de uma tragédia anunciada, sem ajudar em nada, como fazem a maioria dos repórteres internacionais, na prevenção urgente de todas essas mazelas! É revoltante que se pense em “restaurar a democracia” entre pessoas que serão vítimas em breve! Trata-se da restauração segura da “democracia” da intervenção de entidades estrangeiras no Haiti!
Somente as trabalhadoras e trabalhadores haitianos podem afastar com suas próprias mãos as fardas internacionais! E o fato de uma situação tão dinâmica, que se encaminha para uma verdadeira hecatombe, desaparecer dos noticiários e das bocas de jornalistas comprados pelo imperialismo mostra-se como o emblema mais cordial de que as trabalhadoras e trabalhadores haitianos
não possuem nenhum negócio conjunto com o imperialismo; que as bocarras da ONU e do governo de Barack Obama, que sustenta a ONU nas mãos, não visualiza as mortes em Porto Príncipe, porque sabe que pode dizer sob o capitalismo: “trabalhadores, não se preocupem: por mais que vocês morram, a classe trabalhadora continuará subsistindo, de modo que sua sobrevivência está garantida na escravidão de seu vizinho”; que o exército brasileiro a comando de Lula faz o trabalho sujo de proteger a mesa de negócios internacionais no Haiti ao transformar Porto Príncipe num campo de testes e de treinamento militar - como confirma a arrogância do general Bernardes, que compara a fúria que sente aos haitianos com aquela que nutre com os moradores das favelas do Rio de Janeiro, quase dizendo, quando promete voltar à cidade com a experiência de guerra obtida no Caribe -
"Não, não lhe disse eu tudo o que dizer devera;
Minha ira não lhe expus como faço contigo;
Ela ignora a que ponto eu sou seu inimigo.
Face a face humilhá-la é o que minha honra manda,
Que ante ela, livremente, o meu ódio se expanda"!dando-se a si a melhor parte dos “prêmios”, e buscando reservar para si a mais importante parte do botim da reconstrução; que esse mesmo governo Lula, que foi o presidente sob o qual o comando brasileiro na MINUSTAH se iniciou, que tanto se arroga de suas “responsabilidades internacionais a serem mantidas com os organismos internacionais” e que por isso “não pode deixar de cumprir a liderança das tropas da ONU no Haiti”, e que essa invasão “é positiva à reconstrução do país e de sua democracia”, só pode consagrar como a maior de suas vitórias o fato de, em 6 anos,
ter organizado a fome, a violência desumana e a humilhação em cada estômago, em cada corpo, em cada espírito haitiano; que essa “grande vitória” do exército do Brasil impulsiona o Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, a jurar, “Nossa permanência aqui é de longo prazo”.
Tudo isso remete à tarefa mais necessária de que as próprias mãos do povo haitiano sejam as responsáveis pela reconstrução de seu país, pelo controle de todos os recursos recebidos, desde alimentos e água potável até materiais para construção civil, através de organizações trabalhadoras e estudantis; que controle os insumos alimentares já disponíveis nos estabelecimentos comerciais de Porto Príncipe e os utilize para a recomposição de suas forças. É necessário que os lucros das empresas multinacionais instaladas no país sejam revertidos imediatamente à ajuda direta ao povo haitiano, e para que suas próprias organizações sejam revitalizadas.
O povo haitiano deve armar-se e promover uma mobilização efetivamente internacionalista para a defesa de seus interesses, com o intuito de, definindo-se na luta anti-imperialista, politizar-se de maneira totalmente independente e oposta ao governo fantoche de Préval. Se os ministros a serviço da OEA, incluso Préval e Bellerive, não forem varridos no curso da guerra contra o exército norte-americano, não há nenhuma possibilidade de triunfo contra o imperialismo.
Uma direção conduzida pelos trabalhadores organizados deve levar adiante todas as medidas para derrotar o conglomerado de países que desejam recolonizá-la, com os EUA à testa.