quinta-feira, 29 de abril de 2010

Otumbayeva tem a mesma cara da oposição: não é nenhuma alternativa ao povo pobre e trabalhador do Quirguistão


Por André Augusto

Otumbayeva tem a mesma cara da nova oposição: não é nenhuma alternativa ao povo pobre e trabalhador do Quirguistão.

Por André Augusto

O recrudescimento nas tensões da Ásia Central, região adjunta aos países em perene vulcanismo social do oriente Médio (incluso o Afeganistão), mostra a importância estratégica que possui para o imperialismo norte-americano. O presidente do Quirguistão, Kurmanbek Bakiyev, fugiu da capital do país após duas jornadas de mobilizações populares e violentos enfrentamentos com as forças de segurança, que saldaram dezenas de mortos (alguns meios divulgam já a cifra de 100 mortos).

O país diretamente implicado na derrubada do regime de Bakiyev é a Rússia. Apesar de Vladimir Putin, primeiro ministro russo, ter alegado não ter nenhum envolvimento com os "distúrbios" no país Quirguiz, não moveu dois palmos de língua para dizer que não estava de acordo com o caso, nem sequer interpretou o levante anti-governamental no primeiro expediente. Para um país que é historicamente acostumado a farfalhar as asas sobre as rachaduras do mundo, como no século XIX com os seus czares, sendo os eminentes protetores da dominação legitimista e os guardiães contra a revolução - o que valeu à Rússia o epíteto de gendarme da Europa - esse processo não pode ter passado despercebido. “Selem seus cavalos!”, bradara Nicolau I da Rússia, após ouvir ter estourada a Revolução de Fevereiro em Paris; e a águia bicéfala saiu, novamente, pela porta dos fundos, não a galope agora, mas na forma de alguns de seus funcionários e suas penas monetárias.

Primeiramente, o novo comando quirguiz agradeceu à Rússia pelo "apoio significativo" na consecução da tomada do parlamento; e, sabida a existência de bases militares russas no país, afirmou que "todas as forças de segurança apóiam o novo regime". O deposto presidente sugeriu depois "dialogar" com Rosa Otumbayeva, autoproclamada chefe interina do Quirguistão, que alegou ter contatado Moscou assim do êxito da deposição. E por fim, um alto funcionário em Praga disse que Bakiyev, “não havia cumprido sua promessa de fechar a base americana na região”, tarefa necessária, pois, na “ex-república soviética só deve haver uma base – a russa” (fonte: O Estado de S. Paulo, 09/04), defendeu o anônimo.

Quanto a Rosa Otumbayeva, há muito que possui um papel crucial na política interna e externa do Quirguistão. É formada em filosofia pela Universidade Lomonosov de Moscou, presidiu a comissão soviética na Unesco, entre 1989 e 1991, e foi membro da corporação de Ministros de Relações Exteriores da URSS.

Depois da queda da União Soviética em 1991, foi chanceler do Quirguistão independente na equipe do presidente Askar Akayev. A partir de 1997, residiu no exterior, sendo embaixadora nos Estados Unidos e na Grã Bretanha. Portanto, fora embaixadora russa na época da presidência de Bóris Yeltsin, cujo regime foi marcado pela grande corrupção que assolava a Rússia, pelo desemprego e pela fome, além dos conflitos com a Chechênia, assim como responsável pelo colapso econômico e pela venda sem organização de empresas estatais como a Lukoil a empreendedores privados.

Em 2003, foi enviada especial da ONU na Geórgia, onde a Revolução Rosa explodiu, um movimento de protesto popular que derrotou o regime e serviu de precursor da Revolução Laranja de 2004 na Ucrânia e da Revolução das Tulipas em 2005, um ano depois, no Quirguistão.

A título de situarmos a questão nos seus marcos corretos: as chamadas “revoluções coloridas” foram parte de uma política consciente do imperialismo norte-americano (já da era Bush, e mantida por Obama), com participação expressiva de ONG’s financiadas diretamente por este Estado e por suas forças policialescas (leia-se CIA), com o objetivo estratégico de se relocalizar no leste europeu, acertando as contas com o passado ainda recente da Guerra Fria. Não se tratam aqui de revoluções que mudaram o caráter de classe da sociedade ou tampouco do Estado ou, como define Trotsky, não se tratam de revoluções cuja mecânica política consiste na mudança do poder das mãos de uma classe para outra – trata-se, sim, de uma troca de governo entre frações burguesas, dirigida por uma fração da burocracia em detrimento de outra, com interesses internacionais distintos, do pró-oriente ao pró-ocidente. Juntamente com a política guerrerista no Oriente Médio por parte desta mesma potência, puderam levantar governos que levariam até o fim os interesses norte-americanos.

As “revoluções coloridas”, portanto, deram-se no marco da tentativa de reposicionar o combalido imperialismo norte-americano à força de volta ao patamar hegemônico, em áreas que não demonstrariam grande resistência tanto pela pobreza dos países da região quanto pela ausência de poderosas milícias armadas que pudessem ameaçar sua presença, abrindo precedentes materiais para a política mais abertamente bélica e que favorecesse a interferência de Washington no Oriente Médio.

Fato é que com a decadência hegemônica dos EUA, fruto também dos maus resultados até agora obtidos no Iraque e principalmente no Afeganistão, seus interesses puderam ser questionados também no leste europeu, como pudemos ver na guerra da Rússia e da Geórgia no final de 2008, em que os EUA tiveram um papel pífio e não conseguiram rechaçar a investida russa nem seus interesses diretos no país.

Mais uma vez, com o golpe no Quirguistão, onde assume um governo mais inclinado à Rússia, podemos ver a hegemonia norte-americana decadente ser contestada, ainda que de maneira estritamente parcial, cuja tendência pró-russa não sacrifica em nada os interesses norte-americanos diretos na região, como se verá adiante.

A governante interina, Rosa Otumbayeva, rompeu em 2004 com o presidente Akayev para passar às filas da oposição. É parlamentar do Partido Social-Democrata do Quirguistão.

O partido de Otumbayeva, Ala Jurt (“Pátria”), converteu-se no motor que levou Bakyev primeiramente ao poder de estado; isso após uma longa estada nos EUA que lhe rendeu quimeras sobre a construção, no Quirguistão, de uma sociedade ao estilo ocidental. Com isso, não admira em nada que o atualmente proclamado “governo popular” instaurado por Otumbayeva não possua nada de popular, revelando tanto provas automáticas de submissão ao governo russo, inserido completamente nos trâmites internacionais do mercado capitalista, quanto cedendo às pressões externas para “acalmar” as massas quirguizes, inclusive fazendo soar toques de recolher, mecanismos clássicos da repressão militar burguesa.

Para acabar com a aparente dessemelhança entre as intenções de Otumbayeva e os interesses da propriedade privada defendida tanto em Moscou como em Washington – um marco em que são tão idênticos quanto três gotas de água, muito embora trate-se de um lado da burguesia imperialista hegemônica no mundo e de outro uma débil burguesia dependente em ascenso! – o governo auto-proclamado estabeleceu grupos de vigília que se dedicarão a confrontar os “saqueadores” na capital, forcejando a mansidão com todos os subsídios das “Forças Armadas, que estão sob controle”.

As políticas anti-populares de Bakiyev, a corrupção de seu governo, seu giro bonapartista e a colaboração com EUA e Rússia, ao mesmo tempo e de acordo com aquele em cujo bolso mais tilintasse as moedas, foram alimentando um grande descontentamento que explodiu com o aumento das taxas de eletricidade (170%) e calefação (400%). Alguns analistas sustentam que o ataque dirigido pela Rússia contra o governo de Bakiyev como aliado norte-americano, que recrudesceu nas últimas semanas, foi um elemento de peso que detonou a mobilização e que agora Rússia poderia se beneficiar com a queda do governo.

A crise política nesse país da Ásia Central, um dos mais pobres das ex-repúblicas soviéticas, onde 75% da população é muçulmana, pode ter importantes consequências regionais, já que em seu território está localizada a base aérea norte-americana de Manas, nos arredores da capital, que cumpre um papel fundamental para o abastecimento das tropas dos EUA e da OTAN no Afeganistão.

Fica claro que os russos querem a hegemonia sobre as bases militares no país. Segundo outro oficial anônimo do novo governo formado no Quirguistão, haveria uma alta probabilidade de que a base aérea americana no país, que serve as tropas dos EUA no Afeganistão, tenha seu prazo de estadia reduzido. Autoridades de facto quirguizes já anunciavam retirar a base dos EUA do país. Entretanto, os EUA praticamente não tocaram no assunto até agora, muito menos responderam com algo mais concreto.

O que isso sinaliza?

Sinaliza que a oposição dos correligionários de Otumbayeva e essa “líder”, da mesma maneira que o antigo governo de Bakiyev, que nos primeiros anos se mostrara pró-ocidental, mas que em fevereiro de 2009 anunciou finalizar o aluguel da base de Manas após receber inversões financeiras russas, e que entretanto ao primeiro sinal de que os EUA aumentariam o soldo de sua burocracia (de US$17 milhões para US$60 milhões), girou novamente à posição de lacaio do Pentágono (à revelia da vida de milhares de afegãos, que pagaram caro por essa vassalagem), não oporão em nada os movimentos de zigue-zague da crosta governamental quirguiz, olhando para Washington quando a bolsa desta balançar, e voltando-se para Moscou quando Putin recitar as palavras eternamente reconfortantes para qualquer burocracia, “Quem não tem dinheiro, meios e paz, carece de três bons amigos”.

Quando o dinheiro vai à frente, todos os caminhos se abrem; assim como todas as fronteiras nacionais, e para todas as bases militares. Quando se trata do dinheiro, da prostituta universal do gênero humano, os capitalistas provam ter uma só religião.

Ao fim do mesmo dia da insurreição popular, a chefe interina Otumbayeva garantiu a permanência da base aérea americana em Manas, como dito, instalação militar essencial para a consecução das hecatombes no Afeganistão. Ademais, quanto aos acordos para manter a base aérea em Manas, cidade próxima à capital Bishkek, que foram primeiramente firmados pelo próprio presidente deposto Bakiyev, assim se expressou Rosa: "Não temos a intenção de mudar nada na base americana, a prioridade é assegurar a estabilidade para nossos cidadãos. Não vamos alterar nada na base, os acordos existentes seguem em vigor".

Otumbayeva não rechaça, nem de longe, os mesmos planos imperialistas travados pela “oposição” de Bakiyev. Nem o governo interino nem a atual oposição de Bakiyev representam qualquer alternativa para a melhoria das condições de vida da população quirguiz e de sua camada operária, que foi utilizada como aríete de assalto para satisfazer a necessidade de cúpulas governamentais genuinamente vendidas às potências estrangeiras. A batalha da classe trabalhadora pela democracia operária deve ser conduzida por comitês de auto-organização das massas que subvertam a constituição vigente através de contundentes ações políticas que tenham efeito prático imediato no progresso de suas condições de vida, que os meios da existência e da atividade dos trabalhadores sejam relocalizados às suas próprias mãos e não mais estejam concentradas nas mãos dos capitalistas; e não com demagogias parlamentares e a apatia de uma casta política preocupada com o esboço de uma nova Constituição, e com a saúde desta.

Constituições são removíveis; e devem sê-lo na medida em que não mais se quadrem às necessidades sociais sempre em desenvolvimento dos trabalhadores e das massas populares. Não há nada sagrado e imovível em pedaços de papel; são, no mais, atestados transitórios de todos os eventos, tanto trágicos como heróicos – justamente pela expansão da ação mais ou menos organizada das alas históricas progressivas – por que tiveram de passar as massas trabalhadoras e o povo pobre para superar a sua própria sociedade. Os testamentos constitucionais são escritos na água pelas massas e, nesse sentido, a nova Constituição deve ser Revolucionária, levantada justamente pelas massas trabalhadoras e sob a custódia de suas forças de classe.

No último dia 16, Bakiyev renunciou à presidência e deixou o Quirguistão para a cidade de Taraz, no Cazaquistão. O ex-presidente deposto “mudou” de idéia, pediu que saísse em segurança do país junto a seus familiares, e embainhou definitivamente a coragem que não possuía. Para cortar o fio dessa coragem, na verdade, esforços foram feitos conjuntamente entre o presidente do Cazaquistão Nursultan Nazarbayev, o presidente norte-americano Barack Obama e o presidente russo Dmitry Medvedev. As posições da base aérea norte-americana em Manas nunca estiveram tão asseguradas; o governo russo renuncia com admirável facilidade, se não à trivialidade de suas palavras, pelo menos ao seu conteúdo.

Enquanto isso, o povo afegão pagará pela cumplicidade criminosa de Otumbayeva. As mortes “acidentais e inadvertidas” continuarão numa escala cada vez maior com o desespero imperialista dos EUA de liberar suas forças armadas do terreno asiático e girá-lo à Europa, quando necessário, para suplantar os vindouros levantes proletários, de que a crise econômica em curso é a parturiente. Stanley McChrystal continuará a ser o primeiro violino a lastimar as “mortes indevidas de civis inocentes” e, no esforço de diminuir mas não acabar com as mortes afegãs, contradição lógica absurda, saberá declamar: “As mortes acidentais são um percalço infeliz no decurso da chacina mais necessária. Pois se é certo que devemos reduzir o número de vítimas inocentes, é uma tontice esperar que possamos assassinar nossa própria missão”.

Somente a associação dos trabalhadores e das trabalhadoras desses dois países pode reverter as ações do governo facínora de Barack Obama. Uma aliança operária e popular, sob a direção da vontade consciente organizada dos trabalhadores afegãos e quirguizes, juntamente à população oprimida do campo, deve dissipar tanto a invasão militar norte-americana na região quanto a presença de bases militares russas no Quirguistão. E isso antes que os norte-americanos e os russos o façam por si mesmos. Estrategicamente, o fim da opressão e da exploração dos trabalhadores e do povo pobre do Oriente Médio só se dará de fato no marco da transformação revolucionária destes estados em uma unidade, em Estados Unidos Socialistas do Oriente Médio.


sexta-feira, 2 de abril de 2010

Alguns apontamentos gerais sobre a importância da questão haitiana: o Haiti não desapareceu!

Por André Augusto

Na primeira sexta-feira deste fevereiro, o Governo dos Estados Unidos deu seu “apoio” ao perdão de toda a dívida do Haiti com os organismos internacionais de crédito e pediu doações imediatas para a reconstrução do país após o terremoto do mês passado. "Hoje expressamos nosso apoio ao que o Haiti precisa e merece: o perdão da dívida multilateral", disse o secretário do Tesouro americano, Timothy Geithner, em declaração antes da reunião de ministros do Grupo dos Sete (sete países mais industrializados do mundo), que aconteceu naquele fim de semana, no Canadá. Em outras palavras: a filantropia da comunidade internacional está a decidir se os haitianos merecem deixar de pagar pelas mortes, pelos assassinatos políticos, pela repressão militar, pela miséria e pela fome que o colonialismo centenário das mesmas nações que administram a atual ajuda oficial transformou em dívida. A dívida do Haiti monta a US$ 1,314 bilhão. Com uma dívida tão vultosa, curiosa é a nota paralela: a taxa de analfabetismo é de 47% entre os homens e de 42% entre as mulheres; a população abaixo da linha de pobreza é de 67% e o desemprego urbano soma estarrecedores 70%. A taxa de mortalidade infantil é de 83 crianças a cada 1000 nascidas.

De tudo isso, depreende-se que a contração da dívida e a resolução dos problemas nacionais do Haiti não caminham a braços dados. O dinheiro que o Haiti deve ao fundo mundial foi utilizado pelo fundo mundial contra o Haiti.

Enquanto se abarrota a ajuda internacional (por volta de US$ 670 milhões até agora) nos depósitos da ONU, que engordam como se possuíssem estômagos, às trabalhadoras e trabalhadores haitianos a ajuda chega a conta-gotas. É realmente difícil disputar alimentos com espaços tão esfomeados, e o pior para o povo pobre de Porto Príncipe, de Leogane e outras regiões afetadas pelo sismo é que mais uma bocarra se apresenta escancarada para disputar os seus recursos: as goelas lascivas das construtoras brasileiras e norte-americanas. Entre Cila e Caribde, a água entra na boca daquele cujos dentes são mais afiados, e alguns dentes do século XXI disparam fuzis e balas de borracha também.

Todos os carregamentos importantes, trazendo água, alimentos e aparelhos médicos, estão sob controle dos operativos militares dos EUA e seus gigolôs indiretos, os lacaios da ONU. Nos acampamentos de tendas, para “entregar ajuda”, realiza-se comumente deslocamentos e paradas militares, parecidos com as escoltas de Obama, com caminhões Hummer, cada um com seis pessoas, todos fortemente armados e um posicionamento territorial espetacular criando um ambiente de hostilidade, de guerra.

É de bom aviso não contribuir na amnésia crônica da grande burguesia em relação à sua história recente, e lembrar que o quepe do imperialismo mundial, os EUA, que transforma todos os outros países em seus próprios proletários, só anunciou o “apoio” ao perdão da dívida (o verdugo liberando a vítima de pagar pela lâmina que utilizou para estripá-la) após várias nações terem anunciado a “boa nova”. França, Itália e até a Venezuela já o haviam feito publicamente. A resolução deste encontro filantrópico ficou a cargo – creiam – de ninguém menos que dos ministros e governadores dos bancos centrais do G7, Alemanha, Canadá, EUA, França, Reino Unido, Itália e Japão. Alguns desses países têm relações históricas estreitas com o Haiti; nenhuma dessas relações pode ser caracterizada como humanitária.

Por exemplo, quanto à orgia da orquestra da carnificina no Haiti entre a França e seu colonialismo no século XVIII e os EUA, a história é eloqüente. Em 1791 os escravos haitianos das plantações levantaram-se contra seus amos franceses; o resultado da guerra civil foi a derrota e expulsão dos exércitos aventureiros de Napoleão Bonaparte da América, e o estabelecimento da primeira República negra da história. Em 1804, estabeleceu-se a primeira república independente da América Latina. Temendo que o Haiti se transformasse num exemplo da luta contra o colonialismo e o escravismo, os EUA, juntamente com as nações européias, negaram-se a reconhecer o estatuto de república independente ao Haiti, por meio do “grande e libertário” Thomas Jefferson, mais um exemplo de facínoras trasmudados em heróis pela fantasia norte-americana. Isolaram o heróico país caribenho até 1825 quando, pela força dos fatos e dos próprios haitianos, além da necessidade de finalizar o embargo econômico pelo comércio de produtos tropicais, os EUA exigiram o pagamento de uma compensação, para reconhecimento “legal” da independência haitiana, de uma soma equivalente a atuais 20 bilhões de dólares, como indenização dos lucros perdidos pela metrópole na figura de suas plantações e seus escravos. Que orgulho de reivindicação!

Para pagar os juros dessa soma (uma vez que obviamente não poderiam pagar a totalidade daquela quantia astronômica) os haitianos endividaram-se durante mais de um século. Em 1947, a dívida com a antiga potência colonial foi suspensa, apenas para que se reiniciasse um novo ciclo de endividamento. O imperialismo militar norte-americano assumiu as rédeas da brutalização do Haiti no século XX. De 1915-1934 invadiu e ocupou o país; sustentou as sangrentas ditaduras de François Duvalier e Jean-Claude Duvalier entre 1957-1986; o golpe militar de Raúl Cedrás, em 1991, que derrocou o recém-eleito Jean-Bertrand Aristide, teve amplo suporte em George H. W. Bush, pai do pirata do Oriente Médio. Em 1994, por ocasião do descontentamento popular com a nova ditadura, o presidente Bill Clinton reinstalou Aristide na presidência após uma nova invasão de fuzileiros navais, a maior registrada no Haiti; reinstaurou Aristide com a condição de implantar medidas neoliberais determinadas pelo FMI, com os quais o tíbio Jean-Bertrand corroborou de joelhos. Em 2004, os EUA, sob o comando de George Bush filho, apoiou o golpe de estado da direita local, removendo Aristide do país e perseguindo seus simpatizantes.

Dando continuidade à centenária política imperialista, Barack Obama, comandante máximo da ONU e por sua vez da MINUSTAH, as tropas militares de invasão que ocupam o Haiti desde 2004, coloca o fundo de apoio humanitário à catástrofe sísmica no Haiti nas mãos de George W. Bush e de Bill Clinton, responsáveis diretos da opressão do povo haitiano nas últimas décadas.

O Reino Unido e o Canadá mostram o rosto no Caribe com o adorno das carapaças azuis da MINUSTAH; e o Canadá, adicionalmente, serve de quartel-general seguro para as Conferências de banqueiros, primeiros-ministros, agentes financeiros do FMI, agiotas, usurários, presidentes, órgãos de fomento ao desenvolvimento do continente, muitas vezes todos eles unidos numa pessoa só e, enfim, toda a melhor parte e a nata das aves de rapina imperialistas.

A tragédia social haitiana é alavanca para o capital financeiro para os imperialistas

Nem os mais exitosos sobreviventes do Haiti desde o terremoto – as mercadorias dos supermercados centrais – escaparam das indissolúveis cadeias que representam o terremoto social do imperialismo norte-americano e europeu. Há algumas semanas, uma máquina, um bulldozer, utilizada para limpar os escombros do maior supermercado do Haiti, o Mercado Caribenho, causou um colapso secundário, ruindo as estruturas já emaciadas da construção, para vê-la abaixo no momento seguinte. Vários haitianos se encontravam no local nesse momento, uns ajudando nas buscas e outros procurando artigos úteis. Mesmo inundado por ajudantes, o Haiti segue faminto. A dispersão da ajuda internacional perde seu caráter útil ao povo haitiano enquanto ganha um caráter utilitário ao imperialismo, agora sob a égide da abertura de licitações às empreiteiras multinacionais e corporações bilionárias para a reconstrução do Haiti.

Porto Príncipe fica cada vez mais longe das mãos das trabalhadoras e do povo haitiano ao mesmo tempo em que são contratados por essas empresas para montar com suas mãos bloco após bloco. Na última Conferência do Canadá, os bucaneiros dos países centrais acharam a idéia brilhante – para eles e para a solução de seus problemas domésticos, devidos à crise econômica – de amenizar a situação haitiana com o mesmo roteiro úmido que usam em seus países industrialmente mais avançados – a “criação de empregos”. Sua filantropia burguesa só foi tão longe quanto a fumaça de suas fábricas: contratar 10,000 haitianos, a um salário de fome de 5 (cinco!) dólares cada um, durante dez anos para ajudar na reconstrução. Do ponto de vista da necessidade de emprego do povo trabalhador do Haiti isso é absolutamente insuficiente; por outro lado, salta aos sentidos como os EUA se aproveita da situação de miséria do Haiti para impor condições de trabalho verdadeiramente escravagistas. Enquanto isso, no Chile, a “socialista” Michelle Bachellet e o empresário reacionário Sebastián Piñera, passado e futuro presidenciais, declamam ao som das trombetas das Forças Armadas que ninguém “pode se aproveitar de situações de catástrofe para cometer atos delituosos”, acusando os esforços justos e desesperados dos trabalhadores chilenos de apanhar os alimentos e água potável nos supermercados locais, negando-se a sobreviver com evangelhos governamentais!

No regime do capital monopolista, a condição principal para a escravidão exige a doação, por parte do capitalista, de parte irrisória do produto que o trabalhador extraiu dos seus esforços corpóreos e espirituais, ao trabalhador, ou seja, as condições escravistas da produção se alimentam do assalariado; a vulgaridade contrária da burguesia neoliberal, de que escravidão implica simplesmente falta de recompensa alguma, ajuda a justificar a atitude criminosa dos gerentes de bancos centrais na Conferência do Canadá de “criação de empregos”, que só financiarão em parcelas a continuidade da fome dos haitianos. Empregos esses que, sem dúvida, eles mesmos odiariam executar.

Esses planos de licitações beneficiarão primordialmente as empresas imperialistas; essa “colaboração filantrópica” não cairá sobre os haitianos senão como grandes rochedos de concreto, esmagando sua iniciativa de auto-reconstrução, a partir de seu próprio controle dos recursos recebidos, do país arrasado pela catástrofe natural. Implicará em lucros sísmicos para o capital transnacional e – uma coisa bela é uma coisa para sempre! - esses contratos de licitação às empreiteiras internacionais (é bom lembrar que nenhuma delas é haitiana) serão lavrados pela ONU, a mesma organização que se arrogou o oligopólio da ajuda internacional e continua a conduzir irresponsavelmente o aumento trágico das mortes desde o fim do terremoto, há já quase dois meses.

Isso trará, além de um novo ciclo de endividamento após o “apagar da dívida externa”, o recrudescimento do status de colônia do Haiti, subordinado como tal pelas potências bélicas, com o auxílio nada sutil do papel servil do governo haitiano de René Préval e do primeiro-ministro Jean-Max Bellerive.

A comida entregue pelos carros da ONU é ainda extremamente insuficiente, e os meios midiáticos imperialistas nem se esforçam por ocultá-lo (basta observar a maneira com que as mulheres haitianas são obrigadas a se engalfinhar desesperadamente umas sob as outras para apanhar pequenos sacos de arroz). Adicionalmente a este caos provocado pela ONU, os lugares de distribuição de alimentos são secretos, informado apenas às mulheres, já que, segundo os cálculos inconseqüentes das Nações Unidas, “as mulheres tendem a obrigar-se moralmente a entregar comida a seus familiares, mais que os homens”. Isso só pode significar, numa conjuntura em que não há comida suficiente a todos, a seguinte estatística: aumento da violência contra a mulher, na busca por alimentos. E é necessário distinguir a causa da fome e a operação das consequencias. Pois nem chega perto das taxas monstruosas de violência contra as haitianas pelos soldados da MINUSTAH, que fornecem de maneira bárbara comida em troca de sexo, de silêncio forçado e de outros trabalhos humilhantes às heróicas mulheres do Haiti!

Nesse sentido, a ONU oficialmente decidiu resolver seus próprios problemas criando outros muito maiores para os haitianos; para poder fazer sobreviver sua invasão e controle militar no Haiti, precisa fazer sangrar e arrepiar de fome seus habitantes. Ao fim e ao cabo, a “decisão” do cancelamento da dívida externa do Haiti não tem força para entrar em vigência, e os haitianos continuam a financiá-la aos países imperialistas em decisivas prestações: pagam-na com suas vidas ao invés de pagá-la com suor.

O mais alarmante de tudo – exceto aos ouvidos da “comunidade internacional” - é que o período das chuvas já começou no Haiti, atrasando-se um pouco do esperado (meio de março). A chuva, ao atingir as “cidades de tenda”, estendidas por toda a capital e nos campos de refugiados, já mudou a figura de cor ao povo pobre haitiano, que sem abrigo seguro contra as tempestades sazonais, sofreram as primeiras baixas. A primeira chuva fez 8 vítimas fatais, afora as mulheres haitianas que trabalharam noite adentro para retirar a água das barracas com bacias. Mas o empilhamento de dejetos humanos e corpos das vítimas nas tendas de pano colocam o mais alto alarme à ameaça da disseminação de doenças epidêmicas, que se podem mostrar incontroláveis uma vez desencadeadas, pela mesma falta de infra-estrutura e ausência de estações médicas minimamente capazes de se fixar seguramente em algum terreno. Além da contaminação de alimentos, que podem causar a cólera e a salmonela, a infestação de mosquitos vetores de doenças, como a malária e a dengue, também é uma preocupação candente dos moradores dos campos de refugiados.

E os especialistas em saúde pública que vão ao Haiti vão para fazer entrevistas e entregar o relatório de uma tragédia anunciada, sem ajudar em nada, como fazem a maioria dos repórteres internacionais, na prevenção urgente de todas essas mazelas! É revoltante que se pense em “restaurar a democracia” entre pessoas que serão vítimas em breve! Trata-se da restauração segura da “democracia” da intervenção de entidades estrangeiras no Haiti!

Somente as trabalhadoras e trabalhadores haitianos podem afastar com suas próprias mãos as fardas internacionais!

E o fato de uma situação tão dinâmica, que se encaminha para uma verdadeira hecatombe, desaparecer dos noticiários e das bocas de jornalistas comprados pelo imperialismo mostra-se como o emblema mais cordial de que as trabalhadoras e trabalhadores haitianos não possuem nenhum negócio conjunto com o imperialismo; que as bocarras da ONU e do governo de Barack Obama, que sustenta a ONU nas mãos, não visualiza as mortes em Porto Príncipe, porque sabe que pode dizer sob o capitalismo: “trabalhadores, não se preocupem: por mais que vocês morram, a classe trabalhadora continuará subsistindo, de modo que sua sobrevivência está garantida na escravidão de seu vizinho”; que o exército brasileiro a comando de Lula faz o trabalho sujo de proteger a mesa de negócios internacionais no Haiti ao transformar Porto Príncipe num campo de testes e de treinamento militar - como confirma a arrogância do general Bernardes, que compara a fúria que sente aos haitianos com aquela que nutre com os moradores das favelas do Rio de Janeiro, quase dizendo, quando promete voltar à cidade com a experiência de guerra obtida no Caribe -

"Não, não lhe disse eu tudo o que dizer devera;
Minha ira não lhe expus como faço contigo;
Ela ignora a que ponto eu sou seu inimigo.
Face a face humilhá-la é o que minha honra manda,
Que ante ela, livremente, o meu ódio se expanda"!


dando-se a si a melhor parte dos “prêmios”, e buscando reservar para si a mais importante parte do botim da reconstrução; que esse mesmo governo Lula, que foi o presidente sob o qual o comando brasileiro na MINUSTAH se iniciou, que tanto se arroga de suas “responsabilidades internacionais a serem mantidas com os organismos internacionais” e que por isso “não pode deixar de cumprir a liderança das tropas da ONU no Haiti”, e que essa invasão “é positiva à reconstrução do país e de sua democracia”, só pode consagrar como a maior de suas vitórias o fato de, em 6 anos, ter organizado a fome, a violência desumana e a humilhação em cada estômago, em cada corpo, em cada espírito haitiano; que essa “grande vitória” do exército do Brasil impulsiona o Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim, a jurar, “Nossa permanência aqui é de longo prazo”.

Tudo isso remete à tarefa mais necessária de que as próprias mãos do povo haitiano sejam as responsáveis pela reconstrução de seu país, pelo controle de todos os recursos recebidos, desde alimentos e água potável até materiais para construção civil, através de organizações trabalhadoras e estudantis; que controle os insumos alimentares já disponíveis nos estabelecimentos comerciais de Porto Príncipe e os utilize para a recomposição de suas forças. É necessário que os lucros das empresas multinacionais instaladas no país sejam revertidos imediatamente à ajuda direta ao povo haitiano, e para que suas próprias organizações sejam revitalizadas.

O povo haitiano deve armar-se e promover uma mobilização efetivamente internacionalista para a defesa de seus interesses, com o intuito de, definindo-se na luta anti-imperialista, politizar-se de maneira totalmente independente e oposta ao governo fantoche de Préval. Se os ministros a serviço da OEA, incluso Préval e Bellerive, não forem varridos no curso da guerra contra o exército norte-americano, não há nenhuma possibilidade de triunfo contra o imperialismo.

Uma direção conduzida pelos trabalhadores organizados deve levar adiante todas as medidas para derrotar o conglomerado de países que desejam recolonizá-la, com os EUA à testa.

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